quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Convite Para Festa de Fim de Ano


Na cerca do Castelo dos Mouros caíram quase todas as folhas da Tilia glabra, preparando a entrada do Ano Novo. Vamos acreditar – para dar um certo efeito dramático a esta mensagem – vamos acreditar que resta apenas esta folha, uma única folha, a maior de todas as folhas enormes da Tilia glabra. Que amanhã a última folha da Tilia glabra se soltará finalmente do seu ramo, que se precipitará no chão ao cair da meia-noite e que, neste canto da cerca do Castelo dos Mouros, ao longo de mais este Inverno, será de novo transformada em solo. Excitante programa de réveillon este, apenas para os foliões mais relapsos e inveterados: aguardar a queda da última folha frente ao tronco da tília.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Despojos de Natal




Os temporais desta quadra têm deixado o seu rasto por Sintra. Uma carpa madura foi empurrada do Parque da Pena e tropeçou no muro da Calçada, rasgando na sua queda as folhagens de uma sequóia. Ramos de cipreste foram arrancados ao tronco a que pertenciam e sangram no chão da Tapada do Castelo. Não muito longe, um pedaço farinhento de árvore incógnita, carregado de fetos, jaz destroçado no meio do caminho. Obstáculos, passagens bloqueadas, ruínas vegetais, pedras caídas, agua correndo e vento soprando, assim se tem celebrado a quadra no lado oriental da Serra.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Monomania de Natal




Será que nem no próprio 25 de Dezembro podemos deixar em paz as zelkovas? Não, nem no próprio Natal. Ao meio-dia da véspera continuávamos a andar à volta delas. Como se pode ver, estão entre as árvores mais atrasadas dos parques. Mesmo após os temporais dos últimos dias, mantém uma cabeleira amarela abundante: decididamente, não querem largar o Outono e vai ser um problema convencê-las da chegada do Ano Novo. Estas zelkovas tornaram-se uma ideia fixa que deve estar a alterar as nossas feições, tornando os nossos gestos suspeitos e o nosso olhar um pouco chalado (uma palavra para as sacas da naftalina que as traças roeram): esgueirando-nos para os corredores estreitos rentes aos automóveis estacionados, que obstruem a respiração destes belos seres, as portas de um previsível BMW trancaram-se por precaução. Em qualquer caso suspiremos de novo, outra, outra e mais uma vez: que belas estão as zelkovas na entrada da Pena!

sábado, 19 de dezembro de 2009

Os Plátanos Secretos de Monserrate


Saindo dos caminhos aconselhados ao visitante, para fora do mapa do Parque de Monserrate, há um belo platanal (podemos chamar-lhe assim?) pouco conhecido. Há que seguir a ribeira que corre pela cascata e pelos lagos e atravessar a paisagem dos trópicos a que chamam “México”. Após uma mancha de bosque setentrional mais denso, o chão alarga-se sob um céu de altas abóbadas de plátanos.

Estas árvores atarefadas, que se despem apressadamente para o seu sono de beleza, não parecem estar habituadas a receber visitas e têm-se dado bem assim. Se nos portarmos bem, talvez nos permitam permanecer uns momentos em sossego sobre a folhagem caída, quietos, evitando perturbar a vida e morte rápida dos cogumelos, enquanto contamos com respeito os minutos decrescentes para o Inverno.



terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Descintrificação (II)


A fotografia da esquerda foi tirada na Primavera, para ilustrar a decadência da arborização pública de Sintra: um alinhamento que em tempos fora de oito lódãos estava reduzido a cinco. Marcados no chão estavam os vestígios dos exemplares erradicados e nunca substituídos, enquanto a árvore morta em primeiro plano aguardava em silêncio que a levassem dali. Seis meses passados, o novo retrato à direita mostra que os cinco lódãos se tornaram agora apenas três. Receamos que rapidamente estes três se tornem nenhum e que esta rua passe a depender apenas das plantações privadas atrás dos muros em volta para não se tornar inóspita.

O verde mágico de Sintra deve muito à casas e quintas particulares que o cultivam, mas o espaço público, em particular os seus arruamentos arborizados, também são responsáveis por uma parte importante deste seu carácter. É evidente, no entanto, uma degradação progressiva que se exibe quer nas podas violentas (que referimos aqui, aqui ou aqui), quer nas mortes prematuras a que os maus tratos conduzem, quer na pura eliminação seguida de calcetamento rápido, ao jeito de encobrimento das provas de um crime. Os observadores atentos podem contar muitos casos de árvores desaparecidas e muito poucos de árvores de novo plantadas nas ruas desta vila.

Vejam-se estas duas imagens, da Rua D. João de Castro:




Nesta troço da rua em tempos arborizado alguém decidiu que os plátanos não devem ter copas, que as suas raízes devem ser amorosamente agasalhadas sob cimento e alcatrão e que nos céus devem reinar, em vez de ramos e folhas, fios eléctricos e telefónicos (ao centro, compondo a vista, um choupo privado decepado já pela segunda vez este ano). Que o fundo verde da fotografia não nos iluda: caso a atitude presente em primeiro plano se propague, rapidamente toda a encosta se assemelhará a um desses bairros calvos de moradias que cresceram ilegalmente à volta de Lisboa, aqui apenas com arquitectura mais sofisticada.

Porém, se nos deslocarmos alguns metros nesta rua para norte, ainda podemos deixar-nos consolar pelas últimas folhas das tílias que aqui a ladeiam. São sobreviventes de antigas mutilações severas que, nos últimos anos, têm sido misericordiosamente deixadas em paz. Suspiramos por uma rua assim ao longo de toda a sua extensão e por muitas ruas como esta onde hoje apenas há asfalto com calçada e cotos de árvores cortadas.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Cogumelos atacam Monserrate


Exércitos de cogumelos, descidos dos céus, estão a apoderar-se de Monserrate. Avançam numa coluna ameaçadora, subindo a grande colina relvada para tomar o palácio e aí espetar a sua bandeira. Devem vir de vários planetas, porque não nos lembramos de ver tantos e tão diferentes cogumelos juntos há muito tempo – mas, também, há muito tempo que não vínhamos a Monserrate no Outono, nem nos aventurávamos pelos cantos mais virgens do parque. Aí, os caminhos menos percorridos estão cobertos de colónias de múltiplas nações e é quase impossível dar um passo sem pisar uma geração inteira de pequenas cabecinhas ameaçadoras.

A um de nós estes seres efémeros causam uma certa repugnância, não conseguindo sequer olhar para estes retratos sem algum nojo. Outro acha estas criaturas misteriosas e simpáticas. Apenas juntámos as vozes quando tropeçámos naquela massa castanha escura e realmente repelente, em diferentes estados de decomposição, que se mostra nas duas últimas fotografias. De algum modo, condizem com a magnólia morta em torno da qual cresceram; o seu fedor, que o leitor não pode, infelizmente, apreciar aqui, alargava-se por muitos metros e agoniava mesmo os mais estóicos.




quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Zelkovofilia



Pedimos desculpa por não conseguirmos largar as zelkovas, mas elas agora estão ainda mais estonteantes que há duas semanas e não permitem que as deixemos em paz. Quem conhece esta entrada principal da Pena sabe que o caos visual desse lugar deixa pouco espaço para apreciar zelkovas ou o que quer que seja. Estas fotos technicolor são especialmente mentirosas, pois foram enquadradas para iludir a realidade desagradável do meio da manhã de fim-de-semana. Esperamos, aliás, que dificilmente se perceba que se trata da entrada na Pena. Mas os passeantes que por lá passarem poderão improvisar umas palas em volta dos olhos e confirmar que estas belas árvores existem mesmo suspensas no ar e que a sua cor é mesmo esta. Que, vistas de nascente, as suas copas contrastam com os ramos nus dos castanheiros da Índia ao fundo e que, vistas de poente, desaparecem no amarelo dos plátanos-bastardos.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Sintra no Buçaco (III)


Correndo o risco de transformar este blog num Buçaco, acerca de, não resistimos a mais uma reportagem outonal de despedida com mais oito fotografias quadradas dessa mata cercada. Comecemos por nos lançar do parapeito da varanda da sala de jantar do Palace Hotel, o grande antecessor da Quinta da Regaleira, e voguemos para norte até ao solene Cupressus lusitanica a que chamam Cedro de São José e que, a caminho dos quatro séculos de vida, bate os mais velhos da Pena por duzentos anos:


Depois, planemos sobre uma encosta que parecerá familiar a quem conheça, por exemplo, a envolvente de Monserrate. Em tempos, toda Sintra deve ter sido muito parecida com esta assembleia etérea de Quercus vários, azevinhos, loureiros e medronheiros, que se reúne para conferenciar entre as portas das Lapas e de Coimbra:



Deslizemos depois ao longo de alguns caminhos amarelados até ao grupo majestoso dos grandes freixos – Fraxinus ornus – na base da Fonte Fria:




E encerremos, por fim, os mergulhos na floresta do Buçaco, aproximando-nos da orla nevoenta de mais uma abertura de luz demagógica, entre o arvoredo:

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Sintra no Buçaco (II)





Quem reparar nas etiquetas da mensagem anterior perceberá que as fotografias demagógicas que recolhemos, que podiam ser de Sintra, são antes do Buçaco. Numa visita recente voltámos a confirmar, como em Setembro, o mesmo sangue que parece correr em ambos os lugares. E mais abundantes ainda do que em Setembro, voltámos a encontrar, agora com toda a força persuasiva do Outono avançado, alguns dos encantos particulares que distinguem o Buçaco.

Como é costume, fontes de satisfação e fontes de tristeza caminham aos pares, como a flor e os espinhos na rosa. Assim, os males do abandono e da pobreza propiciam caminhos remotos e selvagens, floresta espessa vagamente interrompida por jardinagem deixada em descuido, placas caídas, cancelas ferrugentas e ermidas que se arruínam. O mais velho de todos os ciprestes-do-Buçaco no Buçaco – e em Portugal – é celebrado com um poema numa inscrição fanada:

Cedro de S. José
Plantado em 1644 (?)
é considerado o cedro

Nada aqui se aproxima daqueles caminhos diariamente aspirados e polidos sem ervas nem ramos fora do sítio, que se querem tornar moda na Pena e no Castelo dos Mouros e que tanto nos aborrecem. Mas também não estão à vista quaisquer gestos de recuperação da devota rede de passos e ermidas do Deserto e do Sacromonte, que deve ter tido o seu mais recente apogeu no primeiro par de décadas após a instalação das esculturas cerâmicas representando a Paixão, há 70 anos. Este conjunto decadente que lentamente se desfaz ilumina ainda a floresta fabulosa, aguardando socorro.

É também evidente que a mata nunca sofreu o abandono radical e prolongado a que Sintra esteve sujeita e, por isso, talvez não corra o risco de necessitar, nos tempos mais próximos, de um ataque tão radical e sangrento como o que em Sintra conhecemos. Nem a sua localização é propícia à invasão turística sintrense, com os seus milhões anuais da venda de entradas. Assim, as vistas que o Buçaco nos concede num passeio de Novembro recordam algo do que pode ter sido uma Sintra anterior ao furor dos dias de hoje e anterior às décadas abandonadas, quando livremente se entrava e saía da sua selva apenas discretamente cuidada.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Demagogia Fotográfica, ou «Mostra-me o Caminho»





Numa expedição fotográfica de há dois dias em que voltámos a recolher imagens muito parecidas com algumas que aqui colocámos em Setembro, um de nós desabafou que tudo isto não passava de demagogia sob forma fotográfica – objectos escandalosamente fáceis e vulgares, resultado de um só clique displicente que, no entanto, enganavam os seus espectadores com o seu sempre eficaz e pasmante efeito – como o efeito, disse um de nós, de provas fotográficas da existência de Deus.

É um facto: em certos lugares bem escolhidos, em momentos bem delimitados e fugazes, verificada a proporção exacta de luz e de vapor e sendo-nos oferecido o ângulo de visão eleito, um clique irrefutável basta para lançar de joelhos os incréus. Ou, em qualquer caso, para obter ilustrações que se adequem à Mostra-me o Caminho e a outras publicações místicas.

sábado, 21 de novembro de 2009

Zelkovas ruborescidas


Em Junho andámos embasbacados com a luz juvenil das zelkovas - as keyaki japonesas - na entrada da Pena. Agora, chegados ao auge da sua coloração rosa-verde rosa-encarnada, não nos devemos deixar abater pelos fios eléctricos que atravessam as copas, nem pela multidão de automóveis e autocarros da hora de ponta turística. Há sempre um ramo ruborescido que consegue escapar ao ruído para se mostrar aos seus admiradores.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Exemplar raro


No topo do Parque da Liberdade, do lado da Rua das Murtas, vive este raro e caprichoso exemplar de Palmeira-de-Tronco-Encarnado, que só se encontra nesta altura do ano. Quem pretender (muito justamente) prestar-lhe vassalagem deve correr: no Inverno a preciosidade converte-se em mera Palmeira-Palmeira.

domingo, 15 de novembro de 2009

Outono: last call




Quem quiser gozar por inteiro os prazeres do Outono sintrense vai ter de se apressar. Uns dias mais e a paisagem invernosa sobrepõe-se à outonal. Uma manhã molhada e escura como a de hoje já prenuncia o fim dos dias dourados. No entanto, ao longo da semana que vem, prevê-se tempo mais frio mas manhãs nevoentas seguidas por dias ensolarados, que ainda podem bem ser saboreados por inteiro, como despojos desta tão aguardada e demasiado curta estação do ano. Estas imagens, envelhecendo rapidamente, recolhemos há talvez sete dias na encosta do Castelo. Estamos a ver se não nos fogem entre os dedos.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Descintrificação (I)


A Sintra luxuriante dos nossos dias, tão diferente da que Herculano descreveu há século e meio, deve muito a uma migração de culturas dendrófilas norte-europeias, que aqui se aclimataram com resultados que hoje vemos como a quintessência sintrense – desde logo, à cabeça, a germânica Pena, seguida do seu irmão britânico menor, Monserrate. Mas as recriações do Jardim do Éden não se ficaram pelas grandes escalas: foram generalizadas com várias intensidades e diferentes sucessos, desde a grande quinta histórica à casa de bonecas com o seu pátio de um palmo.

Foi e continua a ser o conjunto de acções de múltiplos proprietários inspirados, com os seus parques públicos ou privados, a fonte primeira desse deslumbrante equilíbrio de paisagem que conhecemos, em parte edificada, em parte natureza domesticada, em parte quase selva. Porém, quando estes proprietários são contaminados pelo ódio meridional à arborização séria e perdem o sentido dos seus deveres e da sua responsabilidade, os resultados são desastrosos: Sintra descintrifica-se.

Na base das escadinhas de Santa Maria havia uma casa no meio do seu jardim-selva, próprio de um local há muito tempo em quase abandono. Precisava de quem tratasse dele, é certo, mas o recanto, para quem passava nos caminhos em volta, era um gosto de sombra e verde saturado. Há poucos anos a casa foi comprada por diplomatas, cremos que vindos de um lugar hispânico – talvez o deserto de Sonora, talvez o de Atacama, talvez um pedaço dos mais estéreis de Castela Nova ou Aragão. Atarefaram-se em obras na casa e no jardim, e o resultado foi este:


Não gostamos dos detalhes decorativos, mas é mera questão de gosto, tal como o são, de outro modo, o pavilhão de churrasco e a piscina. Mas arrasar toda vegetação e cobrir o chão de lajes em forma de calçada calcária é puro crime lesa-Sintra para o qual não há perdão. Um sítio magnificamente sintrense transformou-se assim num sítio desgostoso a evitar. A única réstia de esperança está agora na placa “vende-se” pendurada após a devastação. Roga-se aos futuros proprietários um pouco mais de sensibilidade e algum reconhecimento pelo lugar único que lhes será permitido partilhar. Plantar um jardim-bosque que merecesse Sintra seria um bom começo.

sábado, 7 de novembro de 2009

Bruscamente, no Outono


Bruscamente as melias decidem amarelar. Tão rápida e intensamente que os observadores mais distantes ou distraídos podem pensar estar perante florações de Outono. Mas não, são apenas as folhas das asiáticas melias a outonar. As que aqui vemos encontram-se no terreiro defronte da estação da Portela de Sintra, há muito transformado em gigante parque de estacionamento e que podia e devia ser um outro tipo de parque: uma praça jardim com, por exemplo, estacionamento subterrâneo.


quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A Parques de Sintra e a complexa tarefa de vender bilhetes


A Parques de Sintra – apesar de se fazer pagar principescamente pela gestão dos parques públicos e de recorrer a modernos sistemas informáticos para a emissão de bilhetes – obriga os que queiram visitar o Parque da Pena entrando pelo Portão dos Lagos a, simplesmente, subir cerca de 1 Km até à bilheteira do portão principal da Pena. Isto porque um estranho capricho informático (ou será de gestão?) impossibilita a venda do respectivo bilhete na bilheteira do Castelo dos Mouros – consideravelmente mais próxima da referida entrada – e porque, na época baixa, a bilheteira do Portão dos Lagos se encontra encerrada. Se a isto juntarmos o facto do posto de venda da entrada principal do Parque da Pena apenas ter um(a) funcionário(a) de serviço e, consequentemente, ao fim-de-semana, dezenas de metros de fila de espera, constatamos que, apesar dos discursos de boas intenções, há um profundo desrespeito por aqueles em nome de quem esta empresa exerce a sua actividade.

Ou será pedir muito que as várias bilheteiras geridas pela mesma empresa e ligadas pelo mesmo sistema informático possam vender bilhetes de entrada para qualquer um dos parques? Caso seja, sugerimos uma solução revolucionária: a adopção de bilhetes impressos tipograficamente. Seria até uma bonita homenagem ao antiquado Gutenberg!

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Votos de Bom Inverno


Na Primavera que passou, numa manhã nevoenta de Maio, demos as boas vindas a um castanheiro adolescente que se instalou na orla do Castanhal da Rainha para, assim esperamos, o primeiro de muitos séculos de vida. Nesta manhã nevoenta de Novembro, levando-lhe votos de bom repouso de Inverno, saudámos de novo a sua beleza e a das folhas que lhe restam.

sábado, 31 de outubro de 2009

Poemas com “Outubro” (IIII)


Com flores despertadas num baldio pela chuva de Outubro e com o último dia de Outubro fecham-se os poemas com Outubro no nome:


*

VERÃO INDIANO


Outubro, flor do meu perigo –
primavera derramada pelos rios.

Ora me é indiferente até à morte
– o acero tem o voo quebrado, os fogos trazem tanto fumo –
ora o terror de existirem me afronta
radioso, como o astro vermelho.

Tudo é já sabido, a maré prevista
e porém tudo se obscurece e aclara
com fresca desesperação, com extraordinário
firmeza...

A luz entre duas chuvadas, sobre a ponta
do rio que me trespassa entre corpo
e alma, é uma luz da noite
– a noite que não verei –
clara nas selvas.


Cristina Campo
Trad. José Tolentino Mendonça

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Capitão Ahab, precisa-se



Duas horrendas baleias brancas estão a assombrar a Serra de Sintra: uma anda pelo jardim do portão principal da Pena, levantando a sua bossa acima do muro e desfigurando a paz das manhãs de Outono. Outra invadiu um outrora tranquilo terreiro junto do Castelo dos Mouros, quebrando o encanto dos caminhos e amedrontando os passantes desprevenidos. Suspeita-se que estes monstros pretendem, com a crueldade que lhes é própria, apoiar visitantes que necessitem refresco ou entretenimento - porque há quem entenda que os Parques não entretêm o suficiente e que os visitantes são excessivamente irrequietos e concentram-se com dificuldade.

Na verdade, estas baleias evocadoras de tendas de copo-d´água poluem as belas visões da Serra e arreliam sem necessidade os amantes de Sintra: «tudo o que enlouquece e que atormenta, tudo o que agita o fundo turvo das coisas, toda a verdade contendo uma dose de malícia, tudo o que desorganiza os nervos e confunde o cérebro, tudo o que existe de demoníaco na vida e no pensamento, todo o mal em suma» (Herman Melville, Moby Dick, trad. Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves, Relógio d´Água 2005, p.219).

Aqui fica por isso um apelo desesperado: não era tão bom que um perseguidor de baleias tão furioso como o Capitão Ahab, mas mais bem sucedido do que o da história terrível, arpoasse impiedosamente estas Moby Dick e restituísse a serenidade a estes lugares?