Se decidíssemos iniciar um grupo de mensagens sobre lugares aparentados com Sintra – a Sintra da serra oriental e do Parque da Pena – teríamos de escolher o seu gémeo Buçaco antes de qualquer outro. Também é uma floresta mágica cercada por um muro, deliberadamente construída no alto de uma montanha, recebendo ares atlânticos que a enevoam. Ambas culminam numa Cruz Alta que por pouco não se levantam exactamente à mesma altura, e as áreas por que se estendem são comparáveis. O Buçaco nasceu dois séculos mais cedo, a partir da fixação dos Carmelitas Descalços, enquanto que a Pena, apesar dos Jerónimos que nela se instalaram – um século antes dos Carmelitas no Buçaco – deve-se realmente a D. Fernando II.
Em ambos os casos, os edifícios originais das ordens religiosas foram absorvidos por delirante arquitectura oitocentista que adoramos sem condições. Mas ao longo de todo o século XX – com ecos mesmo nos nossos dias – o violento preconceito moderno que despreza a arte do século XIX foi, na melhor das hipóteses, condescendente. Assim, no Guia de Portugal reeditado pela Gulbenkian, o Palácio da Pena «não se distingue pelos primores da arquitectura e a harmonia do conjunto», «os viajantes de gosto mais educado e exigente vêem nele um pretensioso mistifório de todos os estilos» e «apenas se salvam do desprezo algumas partes do antigo mosteiro e a sua situação maravilhosa». Quanto ao Buçaco, diverte-nos muito ler «interessante como fantasia cenográfica, o palácio, à luz dos severos princípios da arquitectura, rigorosamente considerado, carece de originalidade, de precisão e de gosto»!
Ambos têm um programa místico determinante, embora o de Sintra, individualista, fluido e adaptável, tal como a época que lhe deu origem, não esteja realmente expresso e necessite constante interpretação. Quem quer que conheça bem Sintra se apercebe facilmente do seu poder de atracção da espiritualidade pouco convencional. Já o programa do Buçaco está bem ancorado no catolicismo. Por um lado, a constelação centrada no convento formando o Deserto carmelita, em representação do Monte Carmelo da Palestina. Por outro, o Sacromonte, uma cidade de Jerusalém simbólica recriando o martírio de Cristo, reproduzindo nos meandros da mata as exactas medidas míticas dos Passos do Calvário.
Hoje, após a curta mas frenética acção da Parques de Sintra (provavelmente milionária, comparada com os recursos que imaginamos atribuídos ao Buçaco), há algo mais decadente e abandonado mas também mais selvagem e estranho na mata carmelita. Ao contrário de Sintra, as portas dos muros estão abertas, o acesso é livre a todas as horas e parece haver uma fruição popular, embora não avassaladora, de automóveis e piqueniques de fim-de-semana vindos das redondezas, ainda que tudo pareça mais modesto e recatado. Talvez seja também a maior distância dos centros geradores do grande turismo predador que contribui para lhe dar um carácter algo adormecido, comparado com uma Pena que sofre cada vez mais os malefícios da sua celebridade.
Por mim, podem iniciar esse grupo de mensagens. Como fã incondicional dessa arquitectura e desse gosto do século XIX (ai os críticos e os historiadores de arte...), contem comigo para as ler.
ResponderEliminarP.S. Podem sempre colocar um selo à entrada do "Sintra, acerca de", informando que se desaconselha a visita a quem desdenhe de tão pobre arte.
Ou melhor: podem dar continuidade a...
ResponderEliminarBom, já somos pelo menos três! É engraçado como, num lugar como Sintra, onde não há como fugir ao século XIX, se tenta contornar os comentários à qualidade arquitectónica, concentrando-os nas maravilhas da natureza. A arquitectura tende a ser vista como interessante na medida em que se funde harmoniosamente na paisagem.
ResponderEliminarSegundo ouvi dizer as semelhanças não são casuais ... foi o mesmo "paisagista" que tratou do Buçaco e da Qta da Regaleira.
ResponderEliminarcumprimentos,
AM
De facto, o Palácio do Buçaco é da autoria de Luigi Manini, que foi cenógrafo no Teatro de São Carlos, que é também responsável pela Quinta da Regaleira e ainda colaborou na decoração interior do Chalet Biester. Terá também trabalhado em alguns destes parques e jardins? Ou noutros edifícios de Sintra?
ResponderEliminarSó hoje li os três 'posts' acerca da bela serra de onde moro. Eu adoro Sintra, já a visitei duas vezes, uma na rota queirosiana (algo que o Bussaco não tem o luxo de ter) e outra em visita esporádica. Quanto a semelhanças, são inequívocas, quanto a preservação, bem pode-se dizer que eram tantas as instituições responsáveis pelo local que um pé tropeçava noutro e era melhor estar tudo quieto, resultado é o que se vê. chegou-se ao cúmulo de os fundos gerados no Bussaco irem para a reparação e conservação de Sintra (!?!) e não, não estou a brincar.
ResponderEliminarRecentemente foi constituída da Fundação Mata do Bussaco que ficou responsável pelo local. Agora com fundos e gente a trabalhar as coisas estão a mudar aos poucos para melhor. Esperemos que volte a visitar-nos e que Bussaco e Sintra sejam bem preservados de ora em diante.
Cabrito do Monte: obrigado pelo comentário; de facto, bem podemos invejar mutuamente os lugares em que vivemos. Quanto a nós, a nossa descoberta do Bussaco é recente, mas prometemo-nos logo passar a fazer dele um destino regular. Um abraço
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