segunda-feira, 30 de março de 2009

Conferências sobre arte e paisagem em Sintra


Iniciou-se o III Curso de Sintra - Idade Contemporânea, organizado pela Divisão de Património Histórico-Cultural da Câmara Municipal de Sintra, que este ano incluirá algumas conferências, directa ou indirectamente, subordinadas às relações entre arte e paisagem em Sintra.

Destacam-se, nomeadamente, as de Maria João Neto (
Sintra através do olhar dos primeiros viajantes ingleses: arte e paisagem, no dia 1 de Abril), de Glória Azevedo Coutinho (Monserrate: a obra italianate do arquitecto James Thomas Knowles, dia 15 de Abril), de Maria João Ortigão (Mulheres artistas entre o fim de século e o modernismo, dia 22 de Abril) e de Maria João Gamito (Sintra para além de Sintra ou o lugar como paisagem, dia 20 de Maio).

As conferências decorrem às 18h30 no Palácio Valenças.

domingo, 29 de março de 2009

Alexandre Herculano


É oportuno aqui citar um pouco mais longamente Alexandre Herculano (1810-1877). Em 1849, a propósito da oposição local encontrada por D. Fernando II à florestação da Pena, fala-nos do ódio meridional às árvores e descreve-nos a serra nua desses tempos. É um trecho das «Breves reflexões sobre alguns pontos de economia agrícola», do Tomo 7 dos Opúsculos (pode ser consultado em vários locais: por exemplo, aqui).

(...)

A que deve o Minho a frescura dos seus vales, os enormes produtos do seu solo, que não sofre comparação com as nossas terras fortes da Estremadura? A uma arborização admirável. O homem do sul tem ódio, literalmente ódio, não só às selvas, mas até à árvore solitária, que pode assombrar-lhe algumas padejas de cereais, porque os cereais são o ídolo que resume todos os seus afectos, embora a cruel experiência lhe venha provar, nos anos desfavoráveis à cultura das gramíneas, que o seu sistema acanhado e exclusivo conduz facilmente à miséria e à perdição.

Este ódio às matas e arvoredos tem-se tornado numa espécie de contágio, que vai lavrando e ameaça as províncias setentrionais. A Beira há muito que começou a ser despojada dos seus magníficos bosques, que por partes a tornavam rival do Minho. Os efeitos, porém, do destroço insensato dos grandes vegetais sentem-se principalmente na Estremadura, e sobretudo neste tracto de terra entre dois mares, onde se acha situada a capital. Os vapores, que as árvores, povoando os cimos dos montes, atrairiam para os vales, não descem á terra: os ventos do norte, precipitando-se livres dos visos calvos das colinas, fustigam as encostas do sul, remoinham nas planícies, e não consentem sequer que o orvalho console à noite a vegetação devorada pelo sol do meio-dia. Na verdade, a aridez dos campos na estação estival pouco importa ao cultivador exclusivo de cereais; mas quando causas desconhecidas impedem, durante o Inverno, o curso dos ventos chuvosos, quando o verão vem substituir-se ao Inverno, não sabemos se como castigo se como advertência, então ele maldiz essas torrentes de ventania, que produzem mais secura em vinte e quatro horas do que três dias de sol ardente. Maldi-las, sem se lembrar ou sem saber, que seus pais e ele próprio contribuíram para a existência de semelhante flagelo pela destruição das matas, ou, quando menos, pelo descuido no plantio delas.

O ciúme cego com que a menor leira de terra arável é disputada aos arvoredos, por causa do predomínio exclusivo dos cereais, explica indirectamente esse furor com que são perseguidas as árvores, até nos sítios mais inférteis, com que se lhes disputa a vida até por entre as penedias das serras.

(...)

Em Sintra, por exemplo, cujos antigos bosques desapareceram há muito, e onde a cepa já começa a escassear, como é fácil de conhecer à simples inspecção do terreno correndo os recessos da serra, os habitantes daqueles contornos deviam, por muitas razões, mas sobretudo por causa do combustível, forcejar para que os cimos escalvados das cordilheiras se povoassem de pinhais ou de soutos e devesas de outras arvores, que esses magros terrenos consentissem. Independentemente das influências, que a nudez ou o selvoso daqueles escarpados rochedos possa ter na cultura dos campos vizinhos; ainda sem atender a que Sintra perde de dia para dia, pela devastação dos grandes vegetais, os encantos que aí atraem os felizes do mundo, e que por longos anos tem sido para os povos dos arredores um manancial de prosperidade; ao menos a consideração de que a falta de um dos objectos mais necessários à vida, igualmente indispensável para o rico e para o pobre, vai em sensível progresso, devia conduzi-los a reconhecer que a arborização da serra é reclamada talvez já pelo interesse da geração actual, e sem duvida pelo das gerações que hão de vir.

(...)

S.M. El-Rei pretendeu aforar uma porção das cumeadas da montanha de Sintra contíguas ao parque da Pena. Aquela porção de terreno ingrato e calvo era destinado à sementeira ou plantio de um bosque que cobrisse de verdura e de vida uma pequena parte dessa ossada de rochedos, que se vão prolongando até a beira do oceano.

Muitos moradores das aldeias circunvizinhas viram, porém, neste empenho uma calamidade. O maninho era ameaçado nos seus direitos inauferíveis, o dorso dos penhascos ofendido na sua pudibunda nudez. Realmente o caso era grave. Agitou-se tudo, protestou-se, requereu-se. A urze e o piorno acharam logo advogados contra o pinheiro orgulhoso, contra o luxo da vegetação. Isto é absurdo e incrível. A celebre frase «creio porque é impossível» não tem só aplicação aos mistérios do céu; tem-na às misérias da terra.

(...)

Na história, na literatura, nos documentos, achareis testemunhos frequentes e irrecusáveis de um facto. Sintra foi por séculos a montanha das selvas. Onde estão estas? Caíram sob o machado da imprevidência. Os estevais seguiram-nas. Agora revolve-se o chão para arrancar algumas raízes. Que arrancarão as gerações futuras? Pedras?

quarta-feira, 25 de março de 2009

O Tapete Verde

Hubert Robert (1733-1808). Le Tapis Vert, c.1775. Óleo sobre tela, 67 x 101,7 cm. Lisboa, Museu Calouste Gulbenkian.

Quem conhecer o Museu Gulbenkian talvez possa recordar-se de uma pintura de Hubert Robert, Dessinateur des Jardins du Roi de Luís XVI. O inverno violento de 1774-75 arruinou os jardins de Versalhes e, entre outros retratos dos trabalhos de abatimento hoje espalhados por vários locais, deu origem a este Le Tapis Vert. A melancolia da paisagem desolada, as árvores derrubadas e o corte dos despojos, ocupada por trabalhadores em descanso, crianças que brincam e elegantes que se passeiam e inspeccionam, vigiada, como por deuses, pelas esculturas impassíveis e um pouco licenciosas, fazem de nós espectadores de uma visão estranha e misteriosa. É esta melancolia ambígua que queremos invocar para falar do parque da Pena e das tapadas em seu torno.

Há uma tradição antiga de verdura luxuriante na serra de Sintra, mas essa abundância parece ter decaído ao longo dos tempos e, por meados do século XIX, Alexandre Herculano descrevia uma montanha nua, (...) cujos antigos bosques desapareceram há muito, e onde a cepa já começa a escassear (...) Sintra foi por séculos a montanha das selvas. Onde estão estas? Caíram sob o machado da imprevidência. Os estevais seguiram-nas. Agora revolve-se o chão para arrancar algumas raízes. Que arrancarão as gerações futuras? Pedras? (...).

A Alexandre Herculano sucedeu um século de intensa plantação de floresta, liderado por D. Fernando II e pela sua obra máxima no parque da Pena. Aquilo a que aprendemos a chamar Sintra, os seus parques e a sua extraordinária vegetação, é o resultado desse impulso fundador e de todos os que o continuaram. Em ciclos de maior actividade e de maior apatia, sobrepondo a sua acção zelosa e o seu desleixo, trouxeram a Sintra vegetal até nós.

Todos sabemos que as últimas décadas foram tempos de entrega progressiva dos parques e das tapadas à sua sorte, com jardins, caminhos, construções e plantações preciosas engolidas por uma massa verde, tudo abraçando, de todas as direcções provindo e em todas as direcções se dispersando. Para quem aprendeu a mergulhar em Sintra no princípio da década de oitenta, como nós, a serra sempre foi isto, e nada senão isto: uma floresta fabulosa, densa, descontrolada e decadente. Todos os invernos se lamentavam árvores grossas e carcomidas das plantações mais antigas, envoltas em hera e cobertas de fetos e musgos, atiradas ao chão pelo último vendaval. E todos os verões se morria de medo dos incêndios que, temíamos, se deflagrassem na serra varreriam num segundo a selva abandonada.

Naturalmente, apaixonados pela nossa floresta virgem, ficámos em estado de choque com o despertar reformador dos últimos dois anos. Percursos há muito tempo esquecidos surgiam do nada. Novos resguardos de madeira acompanham os caminhos. Constroem-se degraus e calçadas. Redes e vedações sinalizam áreas em obras. Jardineiros voltam aos jardins. Acima de tudo, homens e máquinas entram nos bosques, serrando e cortando. Progressivamente, a selva mágica e misteriosa foi sendo arrasada e, no seu lugar, ganha agora corpo um lugar estranho: recantos varridos e minuciosamente tratados, matas esquálidas, clareiras desoladas, árvores majestosas libertas de trepadeiras, pequenas folhosas que subitamente respiram, cepos em sangue, ramos mortos, lascas de madeira, troncos arrancados, terra revolvida.

Os jardins de Versalhes foram reconstruídos e replantados após a devastação e voltaram a um estado de glória. E nós, acreditamos que Sintra e o parque vão renascer? Ou, sem crença, revolta-nos a fúria regeneradora e tememos o regresso do pedregal calvo que a serra em tempos foi? Sentimo-nos felizes, porque o perigo dos tempos de abandono parece afastado, pela primeira vez nas nossas vidas? Ou infelizes, porque esperávamos que a morte arrastada da floresta fabulosa se prolongasse e a prolongasse, ainda assim, para além das nossas próprias vidas? Realmente, não sabemos. Assim começa este blogue.