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quarta-feira, 24 de março de 2010

História do Infeliz Cavaleiro Sintram

Albrecht Dürer, Cavaleiro, Morte e Diabo (1513)
Imagem em Wikipedia, aqui

No Verão passado, a propósito de uma nossa mensagem sobre Neuschwanstein, o RS chamou-nos a atenção para certo vitral desse palácio, que recordava um outro na Pena. O vitral bávaro retrata o Cavaleiro Sintram, uma criação literária de Friedrich de La Mote-Fouqué. Com um nome destes, um tal cavaleiro merece a nossa atenção sintrense.

Friedrich de La Mote-Fouqué, um alemão descendente de refugiados huguenotes, escreveu a sua novela em 1814, a meio de uma carreira literária concentrada no primeiro quartel do século XIX. A Ondina , de 1811, foi o seu maior sucesso, mas toda a sua obra lhe trouxe grande e efémera popularidade. A crítica alemã considera-o um autor menor e não há muitas edições recentes da sua obra – a biblioteca do Goethe Institut de Lisboa, onde o cânone de língua alemã está bem representado, ignora mesmo a sua existência. Já no mundo virtual é fácil encontrar o Sintram e os seus Companheiros e outras obras em acesso livre, sobretudo em tradução inglesa – os anglo-saxónicos deliciaram-se durante muito tempo com Fouqué e quem quiser explorar o Sintram a fundo até tem uma Sinfonia Sintram do americano George Templeton Strong, de 1912.

O Sintram tem, para nós, um factor adicional de interesse: foi concebido a partir de uma fascinante gravura de Dürer, Cavaleiro, Morte e Diabo (Ritter, Tod und Teufel), de 1513. Infelizmente, a novela e o seu mundo fora de moda é menos interessante do que a gravura e talvez os críticos tenham razão. O mundo de um livro estar dentro ou fora de moda é irrelevante, claro, para a exaltação literária que nos pode provocar como leitores (somos fanáticos de Jane Austen!), mas é inevitável admitir que a magia da perfeição está ausente dos solavancos pálidos de Fouqué.

Ainda assim, há muitas centelhas para gozar neste livro, e os Românticos encontrarão muitos motivos para a sua leitura. Logo no primeiro parágrafo, um Sintram de doze anos irrompe numa reunião de cavaleiros em Drontheim, no castelo do seu pai, Biorn dos Olhos Ardentes, gritando: “Cavaleiro e Pai! Pai e Cavaleiro! A Morte e mais Outro, horríveis, perseguem-me outra vez!”, um início dramático que ecoa repetidamente novela fora, ao longo de maldições, paixões proibidas, heroísmo e expiação. A Morte e o Diabo perseguirão Sintram ao longo de muitos anos sombrios e gélidos, sempre envoltos nos Invernos do Norte, até um clímax final que replica com exactidão a gravura de Dürer: Sintram enquanto cavaleiro no meio da vida, cavalgando indiferente junto dos seus companheiros sobrenaturais.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

De Volta aos Capuchos

S. Francisco Xavier em Goa. Pintura de André Reinoso.
Igreja de S.Roque, Lisboa.

O SOS Capuchos primaverou, veraneou, outonou e, em vez de hibernar, como se estaria à espera, despontou com força neste Janeiro. Decidimos festejar, surripiando-lhe descaradamente esta reprodução de uma bela pintura seiscentista portuguesa. Que tenha um Inverno inspirado!

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Quinhentos metros a nordeste do Tapete Verde


Hubert Robert (1733-1808). Le Bosquet des Bains d’Apollon, c.1775. Óleo sobre tela, 67 x 101 cm. Lisboa, Museu Gulbenkian.

Em 1778, Hubert Robert (1733-1808) foi nomeado Dessinateur des Jardins du Roi, por Luís XVI (1754-1793). Um ano antes, o artista apresentara no Salon, com grande sucesso, as suas Vues des Jardins de Versailles dans le Temps qu’on en abattait les arbres, que deram ao público parisiense um vislumbre do grande projecto de Luís XVI que visava transformar os ordenados jardins de Versalhes numa floresta selvagem – numa passagem da natureza controlada à natureza liberta, muito de acordo com as ideias dos philosophes (especialmente Jean-Jacques Rousseau) e com o modelo do parque inglês – que se traduziu, por exemplo, no abate e replante de cerca de duzentas mil árvores nos Invernos de 1774-75 e 1775-76. No Museu Gulbenkian podemos ver dois admiráveis estudos para essas obras (hoje no Palácio de Versalhes): Le Tapis Vert, com que iniciámos este blogue, e Le Bosquet des Bains d’Apollon, pintados provavelmente em 1775.

Nas suas funções, Hubert Robert não se limita a representar o que vê. Intervém no mundo visual: imagina e cria o que de outra forma não seria possível ver. No Parque de Versalhes, como pintor e decorador, concebe vistas, elabora cenários, compõe espaços, escolhe e instala esculturas e obras diversas. O seu trabalho é um misto de pintura, decoração, instalação e comissariado artístico, cruzando meios, géneros e matérias. Exemplo disso é a Grotte des Bains d’Apollon – que recria o Palácio de Tétis – onde Robert reinstalou três grupos escultóricos de artistas franceses do século XVII. Rochas, árvores, água e invisíveis sistemas hidráulicos combinam-se com esculturas classicistas para criar uma obra complexa e fantástica. Um pedaço da desejada natureza selvagem, artificial e ilusória. Uma obra de land art muito antes desta existir.

Hubert Robert (1733-1808). Le Bosquet des Bains d’Apollon, 1803. Paris, Musée Carnavalet.

Ao contrário da tela que o artista pintou em 1803 e que se encontra hoje no Musée Carnavalet, em Paris, O Pequeno Bosque dos Banhos de Apolo não nos dá a ver o resultado final – terminado somente em Setembro de 1780 – mas o seu processo. A pintura encena uma visão dos trabalhos neste sector do Parque, cerca de quinhentos metros a nordeste da vista proporcionada pelo Tapete Verde, mostrando-nos o corte das árvores e o desmantelamento dos jardins, as visitas de inspecção da família real e uma das esculturas, Tritões com os Cavalos de Apolo (c.1670), de Gaspard Marsy (1624/25-1681) e Balthazar Marsy (1628-1674), antes da sua transferência definitiva para a gruta de maravilha – onde ficará à esquerda do grupo central.

Le Bosquet des Bains d’Apollon, Parque do Castelo de Versalhes (fonte: wikipedia).

Quinhentos metros a nordeste d’O Tapete Verde (mas para nós, dentro da sala do Museu Gulbenkian, ali logo ao lado), Robert, pintor de ruínas – que é como quem diz, de desolações e melancolias – mais fingidas que reais, mostra-nos uma ruína natural: um pedaço destroçado do velho parque de Luís XIV (1638-1715) e André Le Nôtre (1613-1700). Mas também os preparativos para a sua reconstrução – também como ruína (pois o que é uma gruta senão um arruinado, ou erodido, pedaço de rocha?). Ruína e transformação: a obra, tal como a vida de Hubert Robert, desenrola-se entre estes dois pólos. Tempos de convulsão, tempos de revolução, tempos de transição. Porque será que estas obras surtem em nós uma tão forte, familiar e íntima atracção?

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A amena e horrenda floresta celestial (Festa em Rambouillet)


Jean-Honoré Fragonard (1732-1806), Festa em Rambouillet (ou A Ilha do Amor), c.1775. Óleo sobre tela, 71 x 90 cm. Lisboa, Museu Gulbenkian.

No Parque da Pena não há rios com cascatas, nem há gôndolas, mas há estranhas árvores retorcidas e uma densa, inquietante e encantatória floresta. Há também pequenos lagos, miradouros caprichosos e caminhos tortuosos que se perdem no misterioso verde. Há pessoas felizes a deambular, mesmo que já não haja festas. Mas, sabemos nós, volta não volta, há pequenos festins ou, simplesmente, grandes piqueniques. Por exemplo, nas margens do Lago de Cascais.

O amor oitocentista – que perdura até hoje – pelos bosques e, em geral, pela natureza selvagem, sobretudo a que é humanamente criada, que esteve na origem do frondoso Parque da Pena, nasceu no século XVIII. Como nasceu, de forma mais ampla, o conceito que lhe está subjacente de espaço atmosférico: um espaço ambíguo, despojado de referências arquitectónicas e vazio de linhas rectas perspécticas e que, em muitos aspectos, parece feito da mesma matéria, dúctil e informe, do ar e das nuvens. É o espaço que vemos, por exemplo, na Festa em Ramboillet (ou A Ilha do Amor), pintada por Jean-Honoré Fragonard (1732-1806) por volta de 1775, comprada em 1928 por Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955) e hoje exposta no Museu Gulbenkian. Ou, com o mesmo tema e directamente relacionado com esta obra, no mais famoso guache de Fragonard – actualmente numa colecção americana.

Jean-Honoré Fragonard (1732-1806), Festa em Rambouillet (ou A Ilha do Amor), c.1775. Guache sobre papel, 26,7 x 35,6 cm. Nova Iorque, Colecção John W. Strauss.

Não temos a certeza de se tratar do Parque de Rambouillet, cedido em 1783 a Luís XVI; pode ser o de Chantilly ou o do Castelo de Cassan, afiançam alguns investigadores (o título é do século XIX). Verdadeiramente, não será (nem nunca foi) nenhum em particular: inventado por Fragonard, ele é o fascinante produto da sua imaginação e a paisagem a personagem principal de um mundo no qual as figuras e os adereços da festa constituem meros figurantes. Este mundo luxuriante, simultaneamente fascinante e assustador, assemelha-se, como num sonho, a um lugar onde a identidade dos elementos parece pronta a estranhas transmutações e onde são frágeis as fronteiras entre os domínios terreno e aéreo. De facto, as frondosas árvores que constituem o cerne de toda a composição e a ocupam quase totalmente, rapidamente poderão ser tomadas por nuvens escuras e ameaçadoras e a árvore despida e ziguezagueante, próxima do centro da pintura, como um relâmpago que irrompe do seio daquelas e atinge furiosamente o mundo inferior.

Por tudo isto, a Festa em Ramboillet reflecte, de forma clara, uma importante transformação na cultura europeia na viragem do século XVIII para o XIX: anuncia o novo e moderno prazer pelo que é ambíguo, indeterminado e, por isso, subjectivo. Reflecte essa “atmosferização” de toda a natureza, que deixa de ser vista como um enigma a estudar, a compreender e a solucionar para se tornar, sobretudo, uma fonte de inquietante prazer, capaz de excitar a alma e arrepiar o corpo, um mistério empolgante e uma jubilosa ameaça, face à qual, como nas figuras de Fragonard, a escala humana é desproporcionadamente pequena. O pintor cria assim um território que sendo, simultânea e ambiguamente, um locus amoenus e um locus horrendus é, acima de tudo, um lugar de intensa paixão.

domingo, 16 de agosto de 2009

A Invenção de Sintra (II)


A invenção de Sintra que testemunhamos em Cinco Artistas em Sintra não foi nem repentina nem, para João Cristino da Silva, trabalho de uma só obra. Ao longo das suas últimas duas décadas de vida, o artista pintou a Serra e a Pena inúmeras vezes, tornando Sintra o seu motivo favorito e, desse modo, pela primeira vez, um tema privilegiado da pintura.

João Cristino da Silva (1829-1877). Paisagem, c.1876. Óleo sobre tela, 46 x 34 cm. Sintra, Palácio Nacional da Pena.

A maioria dessas obras encontra-se em colecções privadas. Algumas em colecções públicas. É o caso da Paisagem que representa o Palácio da Pena, o Castelo dos Mouros e os rochedos e penhascos da Serra e que terá sido a sua última pintura antes do mergulho definitivo na loucura que, em 1877, o conduzirá à morte. Adquirida por D. Fernando, encontra-se ainda hoje na posse do Palácio Nacional da Pena.

João Cristino da Silva (1829-1877). Serra de Sintra, c.1855-57.
Óleo sobre tela, 32,5 x 45 cm. Sintra, ex-Museu Regional de Sintra.


João Cristino da Silva (1829-1877). Estrada da Pena, c.1855-57.
Óleo sobre tela, 36 x 49 cm. Sintra, ex-Museu Regional de Sintra.

Públicas são também duas outras pequenas obras datáveis do período de Cinco Artistas em Sintra e que pertencem à Câmara Municipal de Sintra, tendo integrado o espólio do Museu Regional de Sintra. Acontece que este museu foi recentemente extinto e a sua colecção que, tanto quanto nos lembramos, integra ainda obras de Alfredo Keil (1850-1907), António Carneiro (1872-1930) e Mily Possoz (1888-1967), para dar apenas três exemplos, está guardada – não sabemos onde nem em que condições – longe do olhar do público. À invisibilidade ideológica das obras do Museu do Chiado junta-se, assim, a invisibilidade incompreensível das do ex-museu sintrense. A invenção pictórica de Sintra é hoje, sobretudo, um acontecimento para desfrute privado ou simplesmente virtual.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A Invenção de Sintra (I)


João Cristino da Silva (1829-1877). Cinco Artistas em Sintra, 1855 (detalhe)
(foto em MatrizPix).


João Cristino da Silva (1829-1877). Cinco Artistas em Sintra, 1855. Óleo sobre tela, 86,3 x 128, 8 cm. Lisboa, Museu do Chiado / Museu Nacional de Arte Contemporânea.

Em 1855, João Cristino da Silva (1829-1877) pintou Cinco Artistas em Sintra, uma das primeiras e talvez a mais paradigmática pintura romântica portuguesa. Nela vemos retratados, além do próprio pintor, os seus companheiros de geração e de ideário estético: à esquerda, os pintores Tomás da Anunciação (sentado) e Francisco Augusto Metrass (em pé, atrás dele); à direita, o escultor Vítor Bastos, seguido de Cristino da Silva e, sentado no chão, José Rodrigues. Mas, além dos cinco artistas (munidos de telas, blocos, lápis e pincéis), dos camponeses curiosos que os rodeiam (com os seus trajes saloios) e dos rochedos em que se situam, vemos ainda, ao longe e à esquerda, o Palácio da Pena – terminado poucos anos antes. Mas vemos também uma enevoada mas ainda despida Serra de Sintra. A pintura, destinada à Exposição Internacional de Paris, seria comprada pelo próprio D. Fernando, não apenas o inspirador indirecto da obra mas também o directo responsável pela fama alcançada de imediato pelo artista e, mais importante, o sistemático mecenas e impulsionador da tardia geração de artistas românticos portugueses.

A pintura de Cristino é um retrato de grupo, uma declaração de amizade, uma afirmação geracional e um manifesto estético. A Pena e a serra de Sintra, onde tudo se passa, são aqui tornadas símbolos de um novo gosto e, sobretudo, de um novo conceito de paisagem: vemos não apenas um lugar mas assistimos à construção de um território visualmente diferenciado, em parte real em parte imaginado, pictórico e pintoresco, cenográfico e idealizado, e, acima de tudo, emotivo. Não foi a primeira vez que Sintra, a Serra e a Pena foram representadas; mas foi, provavelmente, a primeira vez que, na pintura, se contribuiu activamente para a invenção moderna de Sintra – aquilo que na literatura, na arquitectura, na jardinagem vinha a ser feito desde o final do século XVIII.

A pintura pertence ao espólio do Museu do Chiado, integrando a maior e a mais importante colecção de arte portuguesa de meados do século XIX até ao início do século XX. Porém, tal como as outras obras desta colecção, não pode ser vista. Guardada permanentemente nas reservas ela testemunha hoje a estranha vontade deste museu em não ser o que deve e o equívoco de pretender ser outra coisa, para a qual não tem nem obras nem meios – um museu de arte contemporânea. Basta compará-lo com a Fundação de Serralves, o Museu Berardo ou o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. Aparentemente, ressuscitar o original (e já na altura equívoco) nome de Museu Nacional de Arte Contemporânea serviu recentemente para sossegar algumas consciências e legitimar a discutível opção.

Impossibilitados de ver a obra, podemos, pelo menos, ver um seu estudo, apropriadamente exposto numa das salas do Palácio da Pena, cuja construção foi tão determinante não apenas para a realização da pintura mas, sobretudo, para a invenção de Sintra como paisagem romântica.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Maria João Gamito: «Sintra para além de Sintra ou o lugar como paisagem»


Na próxima quarta-feira, dia 20, às 18h30, irá decorrer no Palácio Valenças a conferência de Maria João Gamito, Sintra para além de Sintra ou o lugar como paisagem, integrada no III Curso de Sintra - Idade Contemporânea.

Maria João Gamito é Professora Associada com Agregação da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e Professora Associada Convidada do Departamento de Arquitectura do ISCTE. Desenvolve a sua actividade de investigação nas áreas científicas da Cultura Visual, da Teoria da Imagem e do Desenho. A convite do Ministério da Educação, é coordenadora e co-autora de programas pedagógicos do Ensino Artístico Especializado.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Conferências sobre arte e paisagem em Sintra


Iniciou-se o III Curso de Sintra - Idade Contemporânea, organizado pela Divisão de Património Histórico-Cultural da Câmara Municipal de Sintra, que este ano incluirá algumas conferências, directa ou indirectamente, subordinadas às relações entre arte e paisagem em Sintra.

Destacam-se, nomeadamente, as de Maria João Neto (
Sintra através do olhar dos primeiros viajantes ingleses: arte e paisagem, no dia 1 de Abril), de Glória Azevedo Coutinho (Monserrate: a obra italianate do arquitecto James Thomas Knowles, dia 15 de Abril), de Maria João Ortigão (Mulheres artistas entre o fim de século e o modernismo, dia 22 de Abril) e de Maria João Gamito (Sintra para além de Sintra ou o lugar como paisagem, dia 20 de Maio).

As conferências decorrem às 18h30 no Palácio Valenças.

quarta-feira, 25 de março de 2009

O Tapete Verde

Hubert Robert (1733-1808). Le Tapis Vert, c.1775. Óleo sobre tela, 67 x 101,7 cm. Lisboa, Museu Calouste Gulbenkian.

Quem conhecer o Museu Gulbenkian talvez possa recordar-se de uma pintura de Hubert Robert, Dessinateur des Jardins du Roi de Luís XVI. O inverno violento de 1774-75 arruinou os jardins de Versalhes e, entre outros retratos dos trabalhos de abatimento hoje espalhados por vários locais, deu origem a este Le Tapis Vert. A melancolia da paisagem desolada, as árvores derrubadas e o corte dos despojos, ocupada por trabalhadores em descanso, crianças que brincam e elegantes que se passeiam e inspeccionam, vigiada, como por deuses, pelas esculturas impassíveis e um pouco licenciosas, fazem de nós espectadores de uma visão estranha e misteriosa. É esta melancolia ambígua que queremos invocar para falar do parque da Pena e das tapadas em seu torno.

Há uma tradição antiga de verdura luxuriante na serra de Sintra, mas essa abundância parece ter decaído ao longo dos tempos e, por meados do século XIX, Alexandre Herculano descrevia uma montanha nua, (...) cujos antigos bosques desapareceram há muito, e onde a cepa já começa a escassear (...) Sintra foi por séculos a montanha das selvas. Onde estão estas? Caíram sob o machado da imprevidência. Os estevais seguiram-nas. Agora revolve-se o chão para arrancar algumas raízes. Que arrancarão as gerações futuras? Pedras? (...).

A Alexandre Herculano sucedeu um século de intensa plantação de floresta, liderado por D. Fernando II e pela sua obra máxima no parque da Pena. Aquilo a que aprendemos a chamar Sintra, os seus parques e a sua extraordinária vegetação, é o resultado desse impulso fundador e de todos os que o continuaram. Em ciclos de maior actividade e de maior apatia, sobrepondo a sua acção zelosa e o seu desleixo, trouxeram a Sintra vegetal até nós.

Todos sabemos que as últimas décadas foram tempos de entrega progressiva dos parques e das tapadas à sua sorte, com jardins, caminhos, construções e plantações preciosas engolidas por uma massa verde, tudo abraçando, de todas as direcções provindo e em todas as direcções se dispersando. Para quem aprendeu a mergulhar em Sintra no princípio da década de oitenta, como nós, a serra sempre foi isto, e nada senão isto: uma floresta fabulosa, densa, descontrolada e decadente. Todos os invernos se lamentavam árvores grossas e carcomidas das plantações mais antigas, envoltas em hera e cobertas de fetos e musgos, atiradas ao chão pelo último vendaval. E todos os verões se morria de medo dos incêndios que, temíamos, se deflagrassem na serra varreriam num segundo a selva abandonada.

Naturalmente, apaixonados pela nossa floresta virgem, ficámos em estado de choque com o despertar reformador dos últimos dois anos. Percursos há muito tempo esquecidos surgiam do nada. Novos resguardos de madeira acompanham os caminhos. Constroem-se degraus e calçadas. Redes e vedações sinalizam áreas em obras. Jardineiros voltam aos jardins. Acima de tudo, homens e máquinas entram nos bosques, serrando e cortando. Progressivamente, a selva mágica e misteriosa foi sendo arrasada e, no seu lugar, ganha agora corpo um lugar estranho: recantos varridos e minuciosamente tratados, matas esquálidas, clareiras desoladas, árvores majestosas libertas de trepadeiras, pequenas folhosas que subitamente respiram, cepos em sangue, ramos mortos, lascas de madeira, troncos arrancados, terra revolvida.

Os jardins de Versalhes foram reconstruídos e replantados após a devastação e voltaram a um estado de glória. E nós, acreditamos que Sintra e o parque vão renascer? Ou, sem crença, revolta-nos a fúria regeneradora e tememos o regresso do pedregal calvo que a serra em tempos foi? Sentimo-nos felizes, porque o perigo dos tempos de abandono parece afastado, pela primeira vez nas nossas vidas? Ou infelizes, porque esperávamos que a morte arrastada da floresta fabulosa se prolongasse e a prolongasse, ainda assim, para além das nossas próprias vidas? Realmente, não sabemos. Assim começa este blogue.