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quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Sintra no Buçaco (I)


Se decidíssemos iniciar um grupo de mensagens sobre lugares aparentados com Sintra – a Sintra da serra oriental e do Parque da Pena – teríamos de escolher o seu gémeo Buçaco antes de qualquer outro. Também é uma floresta mágica cercada por um muro, deliberadamente construída no alto de uma montanha, recebendo ares atlânticos que a enevoam. Ambas culminam numa Cruz Alta que por pouco não se levantam exactamente à mesma altura, e as áreas por que se estendem são comparáveis. O Buçaco nasceu dois séculos mais cedo, a partir da fixação dos Carmelitas Descalços, enquanto que a Pena, apesar dos Jerónimos que nela se instalaram – um século antes dos Carmelitas no Buçaco – deve-se realmente a D. Fernando II.

Em ambos os casos, os edifícios originais das ordens religiosas foram absorvidos por delirante arquitectura oitocentista que adoramos sem condições. Mas ao longo de todo o século XX – com ecos mesmo nos nossos dias – o violento preconceito moderno que despreza a arte do século XIX foi, na melhor das hipóteses, condescendente. Assim, no Guia de Portugal reeditado pela Gulbenkian, o Palácio da Pena «não se distingue pelos primores da arquitectura e a harmonia do conjunto», «os viajantes de gosto mais educado e exigente vêem nele um pretensioso mistifório de todos os estilos» e «apenas se salvam do desprezo algumas partes do antigo mosteiro e a sua situação maravilhosa». Quanto ao Buçaco, diverte-nos muito ler «interessante como fantasia cenográfica, o palácio, à luz dos severos princípios da arquitectura, rigorosamente considerado, carece de originalidade, de precisão e de gosto»!


Ambos têm um programa místico determinante, embora o de Sintra, individualista, fluido e adaptável, tal como a época que lhe deu origem, não esteja realmente expresso e necessite constante interpretação. Quem quer que conheça bem Sintra se apercebe facilmente do seu poder de atracção da espiritualidade pouco convencional. Já o programa do Buçaco está bem ancorado no catolicismo. Por um lado, a constelação centrada no convento formando o Deserto carmelita, em representação do Monte Carmelo da Palestina. Por outro, o Sacromonte, uma cidade de Jerusalém simbólica recriando o martírio de Cristo, reproduzindo nos meandros da mata as exactas medidas míticas dos Passos do Calvário.


Hoje, após a curta mas frenética acção da Parques de Sintra (provavelmente milionária, comparada com os recursos que imaginamos atribuídos ao Buçaco), há algo mais decadente e abandonado mas também mais selvagem e estranho na mata carmelita. Ao contrário de Sintra, as portas dos muros estão abertas, o acesso é livre a todas as horas e parece haver uma fruição popular, embora não avassaladora, de automóveis e piqueniques de fim-de-semana vindos das redondezas, ainda que tudo pareça mais modesto e recatado. Talvez seja também a maior distância dos centros geradores do grande turismo predador que contribui para lhe dar um carácter algo adormecido, comparado com uma Pena que sofre cada vez mais os malefícios da sua celebridade.



quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A amena e horrenda floresta celestial (Festa em Rambouillet)


Jean-Honoré Fragonard (1732-1806), Festa em Rambouillet (ou A Ilha do Amor), c.1775. Óleo sobre tela, 71 x 90 cm. Lisboa, Museu Gulbenkian.

No Parque da Pena não há rios com cascatas, nem há gôndolas, mas há estranhas árvores retorcidas e uma densa, inquietante e encantatória floresta. Há também pequenos lagos, miradouros caprichosos e caminhos tortuosos que se perdem no misterioso verde. Há pessoas felizes a deambular, mesmo que já não haja festas. Mas, sabemos nós, volta não volta, há pequenos festins ou, simplesmente, grandes piqueniques. Por exemplo, nas margens do Lago de Cascais.

O amor oitocentista – que perdura até hoje – pelos bosques e, em geral, pela natureza selvagem, sobretudo a que é humanamente criada, que esteve na origem do frondoso Parque da Pena, nasceu no século XVIII. Como nasceu, de forma mais ampla, o conceito que lhe está subjacente de espaço atmosférico: um espaço ambíguo, despojado de referências arquitectónicas e vazio de linhas rectas perspécticas e que, em muitos aspectos, parece feito da mesma matéria, dúctil e informe, do ar e das nuvens. É o espaço que vemos, por exemplo, na Festa em Ramboillet (ou A Ilha do Amor), pintada por Jean-Honoré Fragonard (1732-1806) por volta de 1775, comprada em 1928 por Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955) e hoje exposta no Museu Gulbenkian. Ou, com o mesmo tema e directamente relacionado com esta obra, no mais famoso guache de Fragonard – actualmente numa colecção americana.

Jean-Honoré Fragonard (1732-1806), Festa em Rambouillet (ou A Ilha do Amor), c.1775. Guache sobre papel, 26,7 x 35,6 cm. Nova Iorque, Colecção John W. Strauss.

Não temos a certeza de se tratar do Parque de Rambouillet, cedido em 1783 a Luís XVI; pode ser o de Chantilly ou o do Castelo de Cassan, afiançam alguns investigadores (o título é do século XIX). Verdadeiramente, não será (nem nunca foi) nenhum em particular: inventado por Fragonard, ele é o fascinante produto da sua imaginação e a paisagem a personagem principal de um mundo no qual as figuras e os adereços da festa constituem meros figurantes. Este mundo luxuriante, simultaneamente fascinante e assustador, assemelha-se, como num sonho, a um lugar onde a identidade dos elementos parece pronta a estranhas transmutações e onde são frágeis as fronteiras entre os domínios terreno e aéreo. De facto, as frondosas árvores que constituem o cerne de toda a composição e a ocupam quase totalmente, rapidamente poderão ser tomadas por nuvens escuras e ameaçadoras e a árvore despida e ziguezagueante, próxima do centro da pintura, como um relâmpago que irrompe do seio daquelas e atinge furiosamente o mundo inferior.

Por tudo isto, a Festa em Ramboillet reflecte, de forma clara, uma importante transformação na cultura europeia na viragem do século XVIII para o XIX: anuncia o novo e moderno prazer pelo que é ambíguo, indeterminado e, por isso, subjectivo. Reflecte essa “atmosferização” de toda a natureza, que deixa de ser vista como um enigma a estudar, a compreender e a solucionar para se tornar, sobretudo, uma fonte de inquietante prazer, capaz de excitar a alma e arrepiar o corpo, um mistério empolgante e uma jubilosa ameaça, face à qual, como nas figuras de Fragonard, a escala humana é desproporcionadamente pequena. O pintor cria assim um território que sendo, simultânea e ambiguamente, um locus amoenus e um locus horrendus é, acima de tudo, um lugar de intensa paixão.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A Invenção de Sintra (I)


João Cristino da Silva (1829-1877). Cinco Artistas em Sintra, 1855 (detalhe)
(foto em MatrizPix).


João Cristino da Silva (1829-1877). Cinco Artistas em Sintra, 1855. Óleo sobre tela, 86,3 x 128, 8 cm. Lisboa, Museu do Chiado / Museu Nacional de Arte Contemporânea.

Em 1855, João Cristino da Silva (1829-1877) pintou Cinco Artistas em Sintra, uma das primeiras e talvez a mais paradigmática pintura romântica portuguesa. Nela vemos retratados, além do próprio pintor, os seus companheiros de geração e de ideário estético: à esquerda, os pintores Tomás da Anunciação (sentado) e Francisco Augusto Metrass (em pé, atrás dele); à direita, o escultor Vítor Bastos, seguido de Cristino da Silva e, sentado no chão, José Rodrigues. Mas, além dos cinco artistas (munidos de telas, blocos, lápis e pincéis), dos camponeses curiosos que os rodeiam (com os seus trajes saloios) e dos rochedos em que se situam, vemos ainda, ao longe e à esquerda, o Palácio da Pena – terminado poucos anos antes. Mas vemos também uma enevoada mas ainda despida Serra de Sintra. A pintura, destinada à Exposição Internacional de Paris, seria comprada pelo próprio D. Fernando, não apenas o inspirador indirecto da obra mas também o directo responsável pela fama alcançada de imediato pelo artista e, mais importante, o sistemático mecenas e impulsionador da tardia geração de artistas românticos portugueses.

A pintura de Cristino é um retrato de grupo, uma declaração de amizade, uma afirmação geracional e um manifesto estético. A Pena e a serra de Sintra, onde tudo se passa, são aqui tornadas símbolos de um novo gosto e, sobretudo, de um novo conceito de paisagem: vemos não apenas um lugar mas assistimos à construção de um território visualmente diferenciado, em parte real em parte imaginado, pictórico e pintoresco, cenográfico e idealizado, e, acima de tudo, emotivo. Não foi a primeira vez que Sintra, a Serra e a Pena foram representadas; mas foi, provavelmente, a primeira vez que, na pintura, se contribuiu activamente para a invenção moderna de Sintra – aquilo que na literatura, na arquitectura, na jardinagem vinha a ser feito desde o final do século XVIII.

A pintura pertence ao espólio do Museu do Chiado, integrando a maior e a mais importante colecção de arte portuguesa de meados do século XIX até ao início do século XX. Porém, tal como as outras obras desta colecção, não pode ser vista. Guardada permanentemente nas reservas ela testemunha hoje a estranha vontade deste museu em não ser o que deve e o equívoco de pretender ser outra coisa, para a qual não tem nem obras nem meios – um museu de arte contemporânea. Basta compará-lo com a Fundação de Serralves, o Museu Berardo ou o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. Aparentemente, ressuscitar o original (e já na altura equívoco) nome de Museu Nacional de Arte Contemporânea serviu recentemente para sossegar algumas consciências e legitimar a discutível opção.

Impossibilitados de ver a obra, podemos, pelo menos, ver um seu estudo, apropriadamente exposto numa das salas do Palácio da Pena, cuja construção foi tão determinante não apenas para a realização da pintura mas, sobretudo, para a invenção de Sintra como paisagem romântica.