sábado, 31 de outubro de 2009

Poemas com “Outubro” (IIII)


Com flores despertadas num baldio pela chuva de Outubro e com o último dia de Outubro fecham-se os poemas com Outubro no nome:


*

VERÃO INDIANO


Outubro, flor do meu perigo –
primavera derramada pelos rios.

Ora me é indiferente até à morte
– o acero tem o voo quebrado, os fogos trazem tanto fumo –
ora o terror de existirem me afronta
radioso, como o astro vermelho.

Tudo é já sabido, a maré prevista
e porém tudo se obscurece e aclara
com fresca desesperação, com extraordinário
firmeza...

A luz entre duas chuvadas, sobre a ponta
do rio que me trespassa entre corpo
e alma, é uma luz da noite
– a noite que não verei –
clara nas selvas.


Cristina Campo
Trad. José Tolentino Mendonça

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Capitão Ahab, precisa-se



Duas horrendas baleias brancas estão a assombrar a Serra de Sintra: uma anda pelo jardim do portão principal da Pena, levantando a sua bossa acima do muro e desfigurando a paz das manhãs de Outono. Outra invadiu um outrora tranquilo terreiro junto do Castelo dos Mouros, quebrando o encanto dos caminhos e amedrontando os passantes desprevenidos. Suspeita-se que estes monstros pretendem, com a crueldade que lhes é própria, apoiar visitantes que necessitem refresco ou entretenimento - porque há quem entenda que os Parques não entretêm o suficiente e que os visitantes são excessivamente irrequietos e concentram-se com dificuldade.

Na verdade, estas baleias evocadoras de tendas de copo-d´água poluem as belas visões da Serra e arreliam sem necessidade os amantes de Sintra: «tudo o que enlouquece e que atormenta, tudo o que agita o fundo turvo das coisas, toda a verdade contendo uma dose de malícia, tudo o que desorganiza os nervos e confunde o cérebro, tudo o que existe de demoníaco na vida e no pensamento, todo o mal em suma» (Herman Melville, Moby Dick, trad. Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves, Relógio d´Água 2005, p.219).

Aqui fica por isso um apelo desesperado: não era tão bom que um perseguidor de baleias tão furioso como o Capitão Ahab, mas mais bem sucedido do que o da história terrível, arpoasse impiedosamente estas Moby Dick e restituísse a serenidade a estes lugares?

domingo, 25 de outubro de 2009

Poemas com “Outubro” (III)


Após a Rua das Murtas, subindo pela Rua Eduardo Van Zeller, está esta pedra e esta data gravada junto ao chão, três anos antes do ano de nascimento de Cristina Campo, e aqui está este terceiro poema contendo o nome “Outubro”:

*

CANÇÃOZINHA INTERROMPIDA


Debaixo do primeiro Outubro
a maré de folhas
à angélica noite
retinha o pé

Não vistas caíam
(lá tudo era furtivo),
lenta soletrava runas
ao plenilúnio uma figueira.

Desfiava do teu sonho
um gato suas cabalas,
varanda incomparável,
doce Fim do Mundo.

Só a veemente
minha hora lacerava
sobre o cancelo as rosas...
E derrubada uma estátua

talvez mordia – ao turbilhão
daquele voo – o Outono,
travesseiro de musgo
...


Cristina Campo
Trad. José Tolentino Mendonça

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

As traseiras do Património Mundial


Nas traseiras de Sintra Património Mundial, mas de frente para a Serra, eis o Estádio de Sintra (e respectivas imediações). Situado no bairro da Portela, plenamente inserido na sua malha urbana e na zona tampão da área classificada pela UNESCO, é a sede do Sport União Sintrense, alberga a Universidade para a Terceira Idade, para além de ser usado como parque de estacionamento de veículos vários e como depósito de sucata e de entulhos diversos. Consegue a façanha de ser, simultaneamente, um caso de absoluto desleixo, de gritante mau gosto e de total demissão das autoridades municipais do planeamento e gestão do espaço público. Um sério candidato, na nossa opinião, à classificação de Lixo Mundial não se desse o caso de concorrer de forma desleal com áreas efectivamente pobres e destituídas de meios, humanos e materiais, do chamado Terceiro Mundo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Poemas com “Outubro” (II)





A propósito deste amanhecer soalheiro de Outubro na encosta da Tapada do Castelo, o segundo dos quatro poemas de Cristina Campo com o nome “Outubro”:

*

Agora que voltada está a clepsidra
e o futuro, este sol ardente,
já me bate nas costas, com os pássaros
tornarei sem dor
a Bellosguardo: lá pousei a garganta
sobre verdes guilhotinas de cancelos
de um rosa eterno
vibravam as mãos, vazias de flores.

Oscilante entre o fogos dos olivais,
brilhava Outubro antigo, um amor novo.
Emudecida, afiava o coração
na navalha das águias impensáveis
(já próximas, já nossas, já distantes):
aéreos sepulcros, túmulos de neve
do meu amanhã pueril, do sol.


Cristina Campo
Trad. José Tolentino Mendonça




quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Os Pinhões Cerimoniais e as outras Búnias de Sintra


Eis os afamados pinhões da búnia-búnia, que finalmente pudemos tocar, cheirar e cerimoniosamente comer. Sim, esses pinhões aparatosos da fotografia já não existem, circulam neste preciso momento nos nossos caminhos interiores. Primeiro foi necessário abri-los, pois o seu exterior é duro como o dos os verdadeiros pinhões do pinheiro. Depois, pensámos que à primeira dentada seriamos logo transportados aos confins da Austrália, mas a verdade é que ficámos a meio caminho, algo decepcionados com a consistência aglomerosa, a aspereza na língua e o sabor indiferente. Até decidirmos torrá-los levemente numa frigideira seca, o que logo nos fez aterrar confortados na floresta húmida de Queensland – é isso que decerto fazem ou faziam os devotos aborígenes: o pinhão tornou-se estaladiço e o sabor abriu.

Para a colheita dos pinhões tivemos de fazer alguma batota: as búnias-búnias que os ofereceram não foram as de Sintra, mas sim a do Jardim Botânico de Lisboa, que os tinha espalhados, caídos à sua volta. Antes, já tínhamos investigado as outras búnias que existem em Sintra: na do Parque da Liberdade, cuja existência nos foi devidamente recordada em comentário anterior, não encontrámos pinhas nem pinhões, provavelmente devorados pelas exóticas feras predadoras que por lá rondam.


Quanto à búnia-búnia do Parque da Pena (também sem pinhas que se vissem) tem a sedução de uma árvore rara e magnífica mas esquecida, deixada selvagem no jardim abandonado em frente da Abegoaria arruinada. É uma resistente do ciclone de 1941 e, à força de permanecer longe dos caminhos frequentados, tem um ar de formosura desleixada, como aquelas criaturas muito belas que se tornam duplamente encantadoras por darem muito pouca atenção a si próprias.




terça-feira, 13 de outubro de 2009

Poemas com “Outubro” (I)

Castanhal da Rainha

Agora que Outubro avança pelo Castanhal da Rainha, ocorre-nos que há um belo livro de poesia de Cristina Campo, cuja beleza italiana foi tornada belo português por José Tolentino de Mendonça (e publicada com uma bela capa e papel cheiroso pela Assírio & Alvim em 2002). Ora, nesse livro podem ser encontrados quatro poemas contendo o nome “Outubro”, que nos parecem perfeitos para nos acompanhar em quatro dias desta parte do ano. Eis o primeiro:


*

Dobra-se o vestuário branco estival
e tu desces o meridiano,
doce Outubro, e seus ninhos.

Estremece o canto derradeiro nos mirantes
onde o sol era a sombra e a sombra o sol,
entre fadigas acalmadas

E enquanto hesita tépida a rosa
o bago amargo destila já o sabor
dos sorridentes adeus.



Cristina Campo
Trad. José Tolentino Mendonça

sábado, 10 de outubro de 2009

O Parque de Estacionamento, outrora conhecido por Largo da Misericórdia

Largo da Misericórdia (vista parcial)

A circulação e o estacionamento é, indubitavelmente, o problema mais grave de Sintra e também aquele que exige um projecto global corajoso, ancorado em estudos sólidos e em soluções arrojadas, e, necessariamente, numa vontade política forte. O novo mandato autárquico deveria ser a oportunidade de iniciar este processo pondo fim à atitude prevalecente nestes últimos anos: de tanto fingir que não se vê o problema conseguir acreditar que ele não existe.

No centro da Vila a necessidade de reordenamento e requalificação dos espaços públicos é notória. No entanto, para que isso aconteça é necessário que o todo o espaço mais ou menos livre deixe de ser, passiva ou activamente, destinado a estacionamento. Depois de uma entidade externa ter imposto o fim do estacionamento no Terreiro Rainha D. Amélia, defronte do Palácio Nacional de Sintra, quando é que a Câmara se decide, por exemplo, a transformar o Largo da Misericórdia (logo abaixo daquele) numa efectiva praça?

De facto, hoje, Largo da Misericórdia não é senão o nome de um parque de estacionamento público (por outras palavras, um terreno público alugado ao minuto para fins privados), onde um sitiado pelourinho não só constitui um estorvo para os automobilistas como, ao ocupar de forma permanente dois potenciais lugares, conduz a uma substancial perda de receitas privadas e municipais (ver a decisão da Câmara e da Assembleia Municipal de privatizar a exploração do estacionamento pago no concelho). E sempre num estado de duvidosa apresentação e higiene.


quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Ruínas nada românticas



Como todos sabemos, há ruínas e ruínas. As que vemos ao chegar ao centro da Vila Velha – os edifícios do Café Paris e o anexo à Torre do Relógio e à antiga cadeia (hoje Correios) – nada têm de romântico. Fruto do abandono e da incúria, a que apenas escapam os andares térreos, e ameaçando derrocada, sabemos que o seu estado é, em primeiro lugar, da responsabilidade dos seus proprietários. Sabemos também que, infelizmente, estes edifícios não são caso único em Sintra. Mas, dada a sua localização e os instrumentos legais existentes, ocorre-nos uma pergunta: onde pára a Câmara Municipal? Tão activa nos petits riens com que enche a Volta do Duche, porque é que ao longo de todos estes anos não interveio, quando o poderia e deveria ter feito?


segunda-feira, 5 de outubro de 2009

"e eu disse que aqui poria um ser"


A propósito das Primeiras Jornadas Llansolianas de Sintra, que decorreram este fim-de-semana, uma imagem do jardim na entrada do Parque de Pena e um excerto da Causa Amante (Capítulo I – Movimento):

«1 – este é o jardim que o pensamento permite; mas, quando aqui cheguei já havia folhas de pereira curvadas sobre outras folhas e dom arbusto aparecia na proa do fio como uma embarcação branca
esta forma de terra foi cortada num arco
e uma rede intrincada cobre o chão por onde passeio, pensando,
desde o ponto em que sou dom arbusto;
é um jardim,
começou por ser este jardim a ideia de asa triangular, terra coberta das mesmas espécies,
ervas,
e eu disse que aqui poria um ser,
alguém a ser.»

domingo, 4 de outubro de 2009

Tília de folhas extraordinárias


Num circo arbóreo como os antigos, em que se exibiam exotismos, estranhezas e monstruosidades, esta tília seria prontamente contratada para horrorizar os bons cidadãos com as folhas formato A3 que lhe crescem à volta da base do tronco. É fenómeno com pelo menos meio século, como testemunha Mário de Azevedo Gomes na Monografia: “...uma tília de enormes folhas – certas, dos rebentões da base, atingem 32 X 25 cm – e que tenho como Tilia glabra, var. macrophylla... (p. 324)”.


Um pouco mais acima, junto a uma folhagem mais regular, brácteas compridas prometem chás abundantes que poderão acalmar a tensão de todos os turistas encurralados no deprimente trânsito ferial de Sintra. A Tilia glabra, diz-nos o irregularmente fiável mundo virtual, é a Tilia americana e responde igualmente por diversos outros nomes poéticos:

Tilia neglecta, Tilia truncata,
Tilia palmieri, Tilia venulosa.

Encontrar esta tília é muito fácil: vive encostada ao muro da Tapada do Castelo, logo após a antiga Casa do Guarda.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O Poder Sedutor da Couve Portuguesa


Em São Pedro, na curva com que se inicia a Calçada da Pena, pode apreciar-se um desses casos comuns de atracção entre opostos: um encanto de buganvília da qual, como todas as buganvílias, ninguém consegue desviar o olhar e que, se pudesse falar, admitiria melodiosamente ser muito bela e um pouco lerda, partilha hoje o terroso leito com um sólido exemplar de couve portuguesa que a seduziu. Este vegetal sem sofisticação, sem discurso, frequentador de locais sem prestígio, possui uma inteligência prática e vigorosa que é reconhecida por ocasionais buganvílias e por todos os apreciadores de caldo verde.