quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Conto de Inverno (I): O Pórtico e a Guarda




Era uma vez um bosque muito antigo de castanheiros, e o nome desse castanhal recordava uma rainha morta há muito tempo. Estava esse castanhal tão encerrado atrás de muros de pedra e de rochedos que as suas árvores se tinham tornado uma comunidade isolada, absorvida pelos seus assuntos e indiferente às agitações humanas que corriam acima e abaixo pelas estradas à volta. Castanhas germinando e castanheiros bebés, adolescentes impertinentes e adultos perfeitos, árvores envelhecidas, moribundos e cadáveres, conviviam sem as barreiras que existem noutros lugares mais profanos. Era, em suma, um lugar onde o Inverno se celebrava como se diz que deve ser celebrado, em segredo e nas horas mais nevoentas do dia.

A verdadeira porta por onde tinha de passar quem neste bosque pretendesse ser realmente recebido não era nenhum dos portões dos muros da cerca, mas sim o pórtico solene que um certo castanheiro decrépito edificara, ano após ano, à medida da deformação e da queda dos seus ramos, dourado por fetos e trepadeiras. Guardava este pórtico uma criatura rara, de pelagem semelhante ao musgo, que em tempos se disse ter sido uma beleza enfeitiçada, ou uma criatura que poderia maldizer ou abençoar os caminhantes que lhe procurassem os olhos cegos, ou colocar-lhes perguntas que os poderiam perder ou salvar, ou que era – muito improvavelmente! – um tronco morto de castanheiro.

E no que diz respeito à acção propriamente dita: numa dessas manhãs de celebração invernosa, por entre o nevoeiro, bem perto desse pórtico, à vista da cabeça chifrada de guarda, aconteceu que...

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Uma Nova Velha Casa nos Lagos




Já sabemos que as acções mais unânimes da Parques de Sintra – Monte da Lua são as recuperações do património edificado. O Palácio de Monserrate e o Chalet da Condessa, em avançado resgate da sua ruína, são os exemplos mais vistosos, mas o trabalho também é apreciável nos edifícios menores espalhados pelos parques e tapadas. Já aqui tínhamos gabado a nova Casa da Lapa, hoje chegou a altura de mostrar as novas faces coradas de outra casa abandonada que estava em obras desde Abril.

Na casa da Entrada dos Lagos, tudo reluz como acabado de construir: o rosa das paredes, o encarnado dos telhados, o branco dos socos e dos beirados; os candeeiros do portão parecem ser mesmo novos, isto é, não nos lembramos (mas a nossa memória tem apenas duas décadas ou pouco mais) de alguma vez terem existido ali. O novo anexo escuro nas traseiras, que à partida poderia levantar mais reservas, não está mal para o nosso gosto, embora ainda não saibamos para que vai servir – aliás, para que vai servir exactamente todo este conjunto. Substituirá a actual entrada uns metros abaixo? O desaparecimento da obstrutora barraca de madeira onde se vendem bilhetes seria muito bem vindo.

O que menos nos agrada é um detalhe, mas um detalhe que grita aos ouvidos: aquelas duas bandeiras espetadas. Parecem-nos parte de uma compulsão para poluir a vista com acenos, reparos e chamadas de atenção, um fruto amargo da nossa época tão visualmente ruidosa. Ficamos a aguardar que os mastros enferrujem e caiam. Aliás, apesar de tudo reluzir como acabado de construir, daqui a alguns invernos, se tudo tiver corrido conforme previsto, tudo estará mais bem aconchegado ao seu lugar, ganhando sombras de musgo, mossas e manchas de idade.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Lagoa Azul: trouble in paradise


A beleza plácida e paradisíaca da Lagoa Azul – quando vazia dos inúmeros turistas ou simples curiosos, dos pares românticos ou ocasionais, dos aprendizes de vudu e do lixo que quase todos deixam – foi perturbada pelo recente mau tempo.


Dois grandes e belos pinheiros precipitaram-se no solo quando as terras empapadas em água se tornaram incapazes de os segurar. Um logo à entrada, naquela espécie de hall ou terreiro pouco paradisíaco e o outro, o tridente (com os seus três troncos que cresceram a partir da base e que os cozinheiros que se querem na moda apelidariam, provavelmente, de trilogia de pinus), na margem privilegiada, de frente para a Cruz Alta da Penha Longa.


Caídos, eles recordam-nos o que habitualmente gostamos de esquecer: não há paraísos imperturbáveis; o que, se calhar, apenas quer dizer que não há paraísos – a não ser, claro, os irremediavelmente perdidos. Mesmo que, à pequena escala e grande perfeição da Lagoa Azul da Serra de Sintra, quase acreditemos no contrário. Sobretudo agora que o som da cascata e dos múltiplos ribeiros e riachos ecoa pelas margens da lagoa – e que desaparecerá com o fim deste perturbado Inverno.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Lagoa Azul: a visão da cascata


Que bela é a Lagoa Azul – referimo-nos, claro, à da Serra de Sintra, não à de Champagne Bay, na República de Vanuatu, que, à mistura com pedaços da Jamaica e das Ilhas Fiji, serviu de cenário ao filme The Blue Lagoon, de 1980, e que, para o mal ou para o bem, atormentou a puberdade e adolescência de muitos de nós. A bela Lagoa Azul de Sintra não tem nem a Brooke Shields nem o Christopher Atkins – embora raros sejam os dias que não tragam até às suas margens candidatos à perpetuação da sua memória e legado, dispostos, para isso, a realizarem verdadeiros castings on location.

Mas a bela Lagoa Azul de Sintra tem agora uma espécie de cascata, trazida pelas chuvas quase intermináveis deste Inverno. Para a ver em todo o seu esplendor é necessário descer um caminho íngreme e escorregadio que, barranco abaixo e lado a lado com a estrada, leva-nos até à base do paredão que segura e retém até ao limite as águas que escorrem da serra. Aí, vários metros abaixo da superfície da lagoa, das suas margens densamente arborizadas, dos seus nevoeiros e da família de patos que tranquilamente vive a sua condição de estrelas oficiais deste cenário quase paradisíaco – e que muito têm visto ao longo das suas vidas – podemos reforçar a nossa quase crença de termos penetrado num outro território e viajado para uma outra latitude.



terça-feira, 19 de janeiro de 2010

De Volta aos Capuchos

S. Francisco Xavier em Goa. Pintura de André Reinoso.
Igreja de S.Roque, Lisboa.

O SOS Capuchos primaverou, veraneou, outonou e, em vez de hibernar, como se estaria à espera, despontou com força neste Janeiro. Decidimos festejar, surripiando-lhe descaradamente esta reprodução de uma bela pintura seiscentista portuguesa. Que tenha um Inverno inspirado!

domingo, 17 de janeiro de 2010

Vista da Quinta do Relógio


Soubemos pelo Público do dia 13 que a nossa câmara estava a considerar a compra de um dos ícones de Sintra, a Quinta do Relógio. A notícia, replicada no dia seguinte no DN, foi já hoje devidamente coberta pelo Rio das Maçãs, mas decidimos reforçá-la aqui, não só pela sua importância evidente, mas também porque tínhamos em arquivo uma imagem recente da quinta, com que simpatizávamos, e não havia meio de encontrarmos um pretexto para a publicar! Não é fantástica, a sua casca esventrada entre as duas grandes araucárias guardiãs? A foto, porém, não mostra outra das mais imponentes árvores de Sintra, que a esta quinta pertence: o grande sobreiro antigo que deixámos escondido uns metros para a direita deste enquadramento.

A Quinta do Relógio anda em obras decerto há mais de uma década. Recordamo-nos de um conjunto de raves organizadas no esqueleto da casa, algures na década de 90, bem como da transformação mais recente do jardim, que de repente se aprumou todo – ou pelo menos assim parece a quem o vê no início dessa estrada fabulosa que liga Sintra a Colares pela Regaleira, Seteais, Penha Verde e Monserrate. Sem pensar em mais nada – nos milhões que custa, por exemplo, ou no que lá vai ser feito – a ideia de poder contar com mais este local entre os que podem ser publicamente fruídos na nossa vila parece ser uma ideia formidável. No entanto, o projecto que parece estar a ser considerado, o de utilizar parte da quinta para estacionamento de apoio à Regaleira, é mais uma daquelas visões míopes que aguardam que um clarão de bom senso as precipite nos infernos: ficamos sem palavras. De qualquer modo, a compra está longe de estar decidida, por isso sentemo-nos (por exemplo, debaixo do sobreiro escondido fora da fotografia) e aguardemos novas notícias.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Perda Ligeira



Continuemos a lamentar perdas. Pelo Natal, a partir do jardim do Miradouro da Vigia, podia ver-se a Pena atrás de uns cachos de maçãs minúsculas, um arbusto vulgar que os conhecedores de arbustos (que um dia talvez também sejamos) certamente saberão nomear. Porém, as ventanias do fim do ano quebraram o seu tronco e lançaram-no à terra. É apenas uma perda ligeira em que mal se repara, uma perda que o próprio mau tempo ordenou. Ora, se o tempo em pessoa determina que um certo arbusto de frutos alaranjados tem de ir, ainda que seja um arbusto que tão bem guarnece uma certa visão de um palácio extravagante, há que deixá-lo ir sem muitas lágrimas. Acreditemos que o tempo tem razão. Consolemo-nos por o palácio extravagante permanecer no mesmo lugar.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Um Lugar Para Lamentar


Um cenário de chuva, vento e frio é o mais indicado para se falar do corte das tílias do Largo 1º de Dezembro, em São Pedro. Esta fotografia, captada num momento de alegria no trabalho, foi-nos enviada por um sintrense e já foi reproduzida numa mensagem do sempre atento Rio das Maçãs.


O largo forma uma ilha triangular, com dois lados maiores que rondam os 30 metros. Está mesmo a pedir cinco ou seis árvores, em cada um dos vértices e ao longo dos lados maiores, formando um tecto largo e espesso de folhagem. E, de facto, há muito tempo, gente iluminada plantou cinco tílias que, muito tempo depois, tornaram-se grandes tílias maduras de grandes sombras. O corte recente de dois destes velhos exemplares foi um golpe sério na massa de ramos e folhas que cobriam o largo, tendo-lhe retirado a força que ainda se pode ver numa consulta ao Google Maps:


Das cinco, passámos a ter apenas três tílias respeitáveis e uma criança esgalgada, entretanto plantada Há uns dias foi a vez do vértice que faltava, deitado a baixo com o argumento de que “estava doente”. E, para que as duas tílias antigas que ainda sobraram possam também ficar doentes rapidamente, dando alegria e trabalho a mais um cortador de árvores, foi feita uma dessas podas mortíferas tão populares entre nós.

No ciclo sintrense de conferências sobre árvores a que assistimos há uns meses, ouviu-se uma referência a estas árvores, descritas por um técnico municipal como “um perigo”. Se acções do nosso município como este corte de árvores, tão lesivo da sua paisagem urbana, apenas fossem levados a cabo com acompanhamento e participação dos seus cidadãos, tais cidadãos desconfiariam menos dos “perigos” e das “doenças” alegadas e poderiam ser menos desconfiados, críticos e amargos do que nós próprios estamos aqui a ser. E, se se quisesse construir uma relação de confiança entre os sintrenses e as suas autoridades públicas, seria bom saber desde logo qual o destino que se planeia para este largo. Saber se, por exemplo, a ideia é valorizar as bonitas placas de trânsito e o elegante estacionamento que enfeitam o local.

Enfim, para terminar o desabafo de um tempo chuvoso, ventoso e frio, aqui estão mais umas imagens fúnebres de um largo outrora carregado de espírito de Sintra, agora apenas mais um lugar para lamentar.




quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Sensibilidade e Bom Senso


Há alguns meses, já após o pôr-do-sol, cruzámo-nos na Serra com um grupo gótico juvenil que ascendia guiado por um rapaz de olhos devidamente pintados, segurando dois castiçais. O encontro originou mais uma pequena cisão entre os autores deste blogue. Um, vagamente simpatizante desta tribo, enternecendo-se com a ideia de uma celebração nocturna debaixo da floresta alumiada por velas. Outro, incrédulo, protestando pelo patético adolescente da ideia e, pior ainda, pelo risco de incêndio.

Ao mesmo confronto se presta esta fotografia, tirada perto do Portão dos Lagos numa manhã afortunada de luz e névoa ligeira. Um início de dia digno de várias celebrações, mudas ou cantadas, de góticos, renascentistas ou barrocos, com velas ou sem elas. Mas também vários detalhes prosaicos sobre a ilusão das imagens: o ponto de vista, a partir de um terreiro sem graça destinado a estacionamento, com rede de plástico no chão e barraca-WC ao canto; a encosta à esquerda, um matagal de acácias periodicamente ceifado, que nos faz sempre perguntar se não poderia ela passar a ser normalmente arborizada, em vez de deprimente como é.

Há também detalhes que agradam tanto à espiritualidade inflamada como aos espíritos terrenos mais secos. As ramagens que envolvem a silhueta do Palácio da Pena, por exemplo, já as tínhamos visitado noutra estação: é o Quercus robur que poderá bem ser o maior em todo o perímetro dos parques e tapadas. A antiga casa de guarda cujo telhado reluz no canto inferior direito, em vias de parecer nova em folha após a recuperação. O próprio Palácio, claro. E o sol, iluminando sensibilidade e bom senso por igual.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Atenção, Faias: o Inverno Chegou!




Todos os anos, é uma visão comum a que uns respondem com um sorriso, outros com incredulidade, outros com um abanar de cabeça: chega o tempo frio e alguns distraídos continuam a sair de casa de bermudas, chinelos e camisas de alças. Não é por falta de roupa quente, é apenas uma compreensível, ainda que insensata, negação do Inverno. Pois bem, as faias da Tapada do Castelo, entre todos os exemplares arbóreos dessa encosta da Serra, são das mais profundamente afectadas por estes episódios de negação.

A nossa mensagem de Ano Novo para as fabulosas faias de Sintra é esta: Novembro foi definitivamente deixado para trás, já nem sequer estamos em 2009, dentro de dois meses contamos começar a cheirar a Primavera, por isso, queridas faias, vamos largar essa roupa preciosa de ouro e cobre (que, admitimos, vos fica a matar). Vamos tratar de mostrar ao mundo como são lisos e reluzentes esses ramos que se abanam ao vento e à chuva e como sabem as faias repousar, heroicamente nuas, ao frio de Janeiro!