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sábado, 6 de fevereiro de 2010

Camélias de Sintra


As camélias não são de Sintra. Vindas do Oriente e, daí, frequentemente conhecidas por japoneiras, pertencentes a uma grande família que inclui a planta do chá, foram introduzidas por D. Fernando no Parque da Pena. Como tantos outros forasteiros, aqui chegadas adaptaram-se, adoptaram Sintra e foram por esta adoptadas. Pertencem, portanto, a um dos tipos mais comuns e genuínos de sintrense: o adoptivo. Por isso, as camélias são de Sintra.


É isto que a Saboaria e Perfumaria Confiança sabe desde 1930 e, em 2008, resolveu relembrar a todos através de uma reedição exclusiva para A Vida Portuguesa. Podia este sabonete chamar-se, por exemplo, Camélias do Porto? Podia. Talvez até, pelo seu elevado número nesta cidade, com maior propriedade. Mas há qualquer coisa em Sintra que torna mais suas estas e outras flores: a própria Sintra. E agora que as suas camélias iniciam o renascimento anual podemos, finalmente, começar a vislumbrar, por entre os caminhos onde florescem e murcham, a doce, aromática e colorida Primavera que aí vem.


domingo, 16 de agosto de 2009

A Invenção de Sintra (II)


A invenção de Sintra que testemunhamos em Cinco Artistas em Sintra não foi nem repentina nem, para João Cristino da Silva, trabalho de uma só obra. Ao longo das suas últimas duas décadas de vida, o artista pintou a Serra e a Pena inúmeras vezes, tornando Sintra o seu motivo favorito e, desse modo, pela primeira vez, um tema privilegiado da pintura.

João Cristino da Silva (1829-1877). Paisagem, c.1876. Óleo sobre tela, 46 x 34 cm. Sintra, Palácio Nacional da Pena.

A maioria dessas obras encontra-se em colecções privadas. Algumas em colecções públicas. É o caso da Paisagem que representa o Palácio da Pena, o Castelo dos Mouros e os rochedos e penhascos da Serra e que terá sido a sua última pintura antes do mergulho definitivo na loucura que, em 1877, o conduzirá à morte. Adquirida por D. Fernando, encontra-se ainda hoje na posse do Palácio Nacional da Pena.

João Cristino da Silva (1829-1877). Serra de Sintra, c.1855-57.
Óleo sobre tela, 32,5 x 45 cm. Sintra, ex-Museu Regional de Sintra.


João Cristino da Silva (1829-1877). Estrada da Pena, c.1855-57.
Óleo sobre tela, 36 x 49 cm. Sintra, ex-Museu Regional de Sintra.

Públicas são também duas outras pequenas obras datáveis do período de Cinco Artistas em Sintra e que pertencem à Câmara Municipal de Sintra, tendo integrado o espólio do Museu Regional de Sintra. Acontece que este museu foi recentemente extinto e a sua colecção que, tanto quanto nos lembramos, integra ainda obras de Alfredo Keil (1850-1907), António Carneiro (1872-1930) e Mily Possoz (1888-1967), para dar apenas três exemplos, está guardada – não sabemos onde nem em que condições – longe do olhar do público. À invisibilidade ideológica das obras do Museu do Chiado junta-se, assim, a invisibilidade incompreensível das do ex-museu sintrense. A invenção pictórica de Sintra é hoje, sobretudo, um acontecimento para desfrute privado ou simplesmente virtual.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A Invenção de Sintra (I)


João Cristino da Silva (1829-1877). Cinco Artistas em Sintra, 1855 (detalhe)
(foto em MatrizPix).


João Cristino da Silva (1829-1877). Cinco Artistas em Sintra, 1855. Óleo sobre tela, 86,3 x 128, 8 cm. Lisboa, Museu do Chiado / Museu Nacional de Arte Contemporânea.

Em 1855, João Cristino da Silva (1829-1877) pintou Cinco Artistas em Sintra, uma das primeiras e talvez a mais paradigmática pintura romântica portuguesa. Nela vemos retratados, além do próprio pintor, os seus companheiros de geração e de ideário estético: à esquerda, os pintores Tomás da Anunciação (sentado) e Francisco Augusto Metrass (em pé, atrás dele); à direita, o escultor Vítor Bastos, seguido de Cristino da Silva e, sentado no chão, José Rodrigues. Mas, além dos cinco artistas (munidos de telas, blocos, lápis e pincéis), dos camponeses curiosos que os rodeiam (com os seus trajes saloios) e dos rochedos em que se situam, vemos ainda, ao longe e à esquerda, o Palácio da Pena – terminado poucos anos antes. Mas vemos também uma enevoada mas ainda despida Serra de Sintra. A pintura, destinada à Exposição Internacional de Paris, seria comprada pelo próprio D. Fernando, não apenas o inspirador indirecto da obra mas também o directo responsável pela fama alcançada de imediato pelo artista e, mais importante, o sistemático mecenas e impulsionador da tardia geração de artistas românticos portugueses.

A pintura de Cristino é um retrato de grupo, uma declaração de amizade, uma afirmação geracional e um manifesto estético. A Pena e a serra de Sintra, onde tudo se passa, são aqui tornadas símbolos de um novo gosto e, sobretudo, de um novo conceito de paisagem: vemos não apenas um lugar mas assistimos à construção de um território visualmente diferenciado, em parte real em parte imaginado, pictórico e pintoresco, cenográfico e idealizado, e, acima de tudo, emotivo. Não foi a primeira vez que Sintra, a Serra e a Pena foram representadas; mas foi, provavelmente, a primeira vez que, na pintura, se contribuiu activamente para a invenção moderna de Sintra – aquilo que na literatura, na arquitectura, na jardinagem vinha a ser feito desde o final do século XVIII.

A pintura pertence ao espólio do Museu do Chiado, integrando a maior e a mais importante colecção de arte portuguesa de meados do século XIX até ao início do século XX. Porém, tal como as outras obras desta colecção, não pode ser vista. Guardada permanentemente nas reservas ela testemunha hoje a estranha vontade deste museu em não ser o que deve e o equívoco de pretender ser outra coisa, para a qual não tem nem obras nem meios – um museu de arte contemporânea. Basta compará-lo com a Fundação de Serralves, o Museu Berardo ou o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. Aparentemente, ressuscitar o original (e já na altura equívoco) nome de Museu Nacional de Arte Contemporânea serviu recentemente para sossegar algumas consciências e legitimar a discutível opção.

Impossibilitados de ver a obra, podemos, pelo menos, ver um seu estudo, apropriadamente exposto numa das salas do Palácio da Pena, cuja construção foi tão determinante não apenas para a realização da pintura mas, sobretudo, para a invenção de Sintra como paisagem romântica.

domingo, 29 de março de 2009

Alexandre Herculano


É oportuno aqui citar um pouco mais longamente Alexandre Herculano (1810-1877). Em 1849, a propósito da oposição local encontrada por D. Fernando II à florestação da Pena, fala-nos do ódio meridional às árvores e descreve-nos a serra nua desses tempos. É um trecho das «Breves reflexões sobre alguns pontos de economia agrícola», do Tomo 7 dos Opúsculos (pode ser consultado em vários locais: por exemplo, aqui).

(...)

A que deve o Minho a frescura dos seus vales, os enormes produtos do seu solo, que não sofre comparação com as nossas terras fortes da Estremadura? A uma arborização admirável. O homem do sul tem ódio, literalmente ódio, não só às selvas, mas até à árvore solitária, que pode assombrar-lhe algumas padejas de cereais, porque os cereais são o ídolo que resume todos os seus afectos, embora a cruel experiência lhe venha provar, nos anos desfavoráveis à cultura das gramíneas, que o seu sistema acanhado e exclusivo conduz facilmente à miséria e à perdição.

Este ódio às matas e arvoredos tem-se tornado numa espécie de contágio, que vai lavrando e ameaça as províncias setentrionais. A Beira há muito que começou a ser despojada dos seus magníficos bosques, que por partes a tornavam rival do Minho. Os efeitos, porém, do destroço insensato dos grandes vegetais sentem-se principalmente na Estremadura, e sobretudo neste tracto de terra entre dois mares, onde se acha situada a capital. Os vapores, que as árvores, povoando os cimos dos montes, atrairiam para os vales, não descem á terra: os ventos do norte, precipitando-se livres dos visos calvos das colinas, fustigam as encostas do sul, remoinham nas planícies, e não consentem sequer que o orvalho console à noite a vegetação devorada pelo sol do meio-dia. Na verdade, a aridez dos campos na estação estival pouco importa ao cultivador exclusivo de cereais; mas quando causas desconhecidas impedem, durante o Inverno, o curso dos ventos chuvosos, quando o verão vem substituir-se ao Inverno, não sabemos se como castigo se como advertência, então ele maldiz essas torrentes de ventania, que produzem mais secura em vinte e quatro horas do que três dias de sol ardente. Maldi-las, sem se lembrar ou sem saber, que seus pais e ele próprio contribuíram para a existência de semelhante flagelo pela destruição das matas, ou, quando menos, pelo descuido no plantio delas.

O ciúme cego com que a menor leira de terra arável é disputada aos arvoredos, por causa do predomínio exclusivo dos cereais, explica indirectamente esse furor com que são perseguidas as árvores, até nos sítios mais inférteis, com que se lhes disputa a vida até por entre as penedias das serras.

(...)

Em Sintra, por exemplo, cujos antigos bosques desapareceram há muito, e onde a cepa já começa a escassear, como é fácil de conhecer à simples inspecção do terreno correndo os recessos da serra, os habitantes daqueles contornos deviam, por muitas razões, mas sobretudo por causa do combustível, forcejar para que os cimos escalvados das cordilheiras se povoassem de pinhais ou de soutos e devesas de outras arvores, que esses magros terrenos consentissem. Independentemente das influências, que a nudez ou o selvoso daqueles escarpados rochedos possa ter na cultura dos campos vizinhos; ainda sem atender a que Sintra perde de dia para dia, pela devastação dos grandes vegetais, os encantos que aí atraem os felizes do mundo, e que por longos anos tem sido para os povos dos arredores um manancial de prosperidade; ao menos a consideração de que a falta de um dos objectos mais necessários à vida, igualmente indispensável para o rico e para o pobre, vai em sensível progresso, devia conduzi-los a reconhecer que a arborização da serra é reclamada talvez já pelo interesse da geração actual, e sem duvida pelo das gerações que hão de vir.

(...)

S.M. El-Rei pretendeu aforar uma porção das cumeadas da montanha de Sintra contíguas ao parque da Pena. Aquela porção de terreno ingrato e calvo era destinado à sementeira ou plantio de um bosque que cobrisse de verdura e de vida uma pequena parte dessa ossada de rochedos, que se vão prolongando até a beira do oceano.

Muitos moradores das aldeias circunvizinhas viram, porém, neste empenho uma calamidade. O maninho era ameaçado nos seus direitos inauferíveis, o dorso dos penhascos ofendido na sua pudibunda nudez. Realmente o caso era grave. Agitou-se tudo, protestou-se, requereu-se. A urze e o piorno acharam logo advogados contra o pinheiro orgulhoso, contra o luxo da vegetação. Isto é absurdo e incrível. A celebre frase «creio porque é impossível» não tem só aplicação aos mistérios do céu; tem-na às misérias da terra.

(...)

Na história, na literatura, nos documentos, achareis testemunhos frequentes e irrecusáveis de um facto. Sintra foi por séculos a montanha das selvas. Onde estão estas? Caíram sob o machado da imprevidência. Os estevais seguiram-nas. Agora revolve-se o chão para arrancar algumas raízes. Que arrancarão as gerações futuras? Pedras?

quarta-feira, 25 de março de 2009

O Tapete Verde

Hubert Robert (1733-1808). Le Tapis Vert, c.1775. Óleo sobre tela, 67 x 101,7 cm. Lisboa, Museu Calouste Gulbenkian.

Quem conhecer o Museu Gulbenkian talvez possa recordar-se de uma pintura de Hubert Robert, Dessinateur des Jardins du Roi de Luís XVI. O inverno violento de 1774-75 arruinou os jardins de Versalhes e, entre outros retratos dos trabalhos de abatimento hoje espalhados por vários locais, deu origem a este Le Tapis Vert. A melancolia da paisagem desolada, as árvores derrubadas e o corte dos despojos, ocupada por trabalhadores em descanso, crianças que brincam e elegantes que se passeiam e inspeccionam, vigiada, como por deuses, pelas esculturas impassíveis e um pouco licenciosas, fazem de nós espectadores de uma visão estranha e misteriosa. É esta melancolia ambígua que queremos invocar para falar do parque da Pena e das tapadas em seu torno.

Há uma tradição antiga de verdura luxuriante na serra de Sintra, mas essa abundância parece ter decaído ao longo dos tempos e, por meados do século XIX, Alexandre Herculano descrevia uma montanha nua, (...) cujos antigos bosques desapareceram há muito, e onde a cepa já começa a escassear (...) Sintra foi por séculos a montanha das selvas. Onde estão estas? Caíram sob o machado da imprevidência. Os estevais seguiram-nas. Agora revolve-se o chão para arrancar algumas raízes. Que arrancarão as gerações futuras? Pedras? (...).

A Alexandre Herculano sucedeu um século de intensa plantação de floresta, liderado por D. Fernando II e pela sua obra máxima no parque da Pena. Aquilo a que aprendemos a chamar Sintra, os seus parques e a sua extraordinária vegetação, é o resultado desse impulso fundador e de todos os que o continuaram. Em ciclos de maior actividade e de maior apatia, sobrepondo a sua acção zelosa e o seu desleixo, trouxeram a Sintra vegetal até nós.

Todos sabemos que as últimas décadas foram tempos de entrega progressiva dos parques e das tapadas à sua sorte, com jardins, caminhos, construções e plantações preciosas engolidas por uma massa verde, tudo abraçando, de todas as direcções provindo e em todas as direcções se dispersando. Para quem aprendeu a mergulhar em Sintra no princípio da década de oitenta, como nós, a serra sempre foi isto, e nada senão isto: uma floresta fabulosa, densa, descontrolada e decadente. Todos os invernos se lamentavam árvores grossas e carcomidas das plantações mais antigas, envoltas em hera e cobertas de fetos e musgos, atiradas ao chão pelo último vendaval. E todos os verões se morria de medo dos incêndios que, temíamos, se deflagrassem na serra varreriam num segundo a selva abandonada.

Naturalmente, apaixonados pela nossa floresta virgem, ficámos em estado de choque com o despertar reformador dos últimos dois anos. Percursos há muito tempo esquecidos surgiam do nada. Novos resguardos de madeira acompanham os caminhos. Constroem-se degraus e calçadas. Redes e vedações sinalizam áreas em obras. Jardineiros voltam aos jardins. Acima de tudo, homens e máquinas entram nos bosques, serrando e cortando. Progressivamente, a selva mágica e misteriosa foi sendo arrasada e, no seu lugar, ganha agora corpo um lugar estranho: recantos varridos e minuciosamente tratados, matas esquálidas, clareiras desoladas, árvores majestosas libertas de trepadeiras, pequenas folhosas que subitamente respiram, cepos em sangue, ramos mortos, lascas de madeira, troncos arrancados, terra revolvida.

Os jardins de Versalhes foram reconstruídos e replantados após a devastação e voltaram a um estado de glória. E nós, acreditamos que Sintra e o parque vão renascer? Ou, sem crença, revolta-nos a fúria regeneradora e tememos o regresso do pedregal calvo que a serra em tempos foi? Sentimo-nos felizes, porque o perigo dos tempos de abandono parece afastado, pela primeira vez nas nossas vidas? Ou infelizes, porque esperávamos que a morte arrastada da floresta fabulosa se prolongasse e a prolongasse, ainda assim, para além das nossas próprias vidas? Realmente, não sabemos. Assim começa este blogue.