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segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Quinhentos metros a nordeste do Tapete Verde


Hubert Robert (1733-1808). Le Bosquet des Bains d’Apollon, c.1775. Óleo sobre tela, 67 x 101 cm. Lisboa, Museu Gulbenkian.

Em 1778, Hubert Robert (1733-1808) foi nomeado Dessinateur des Jardins du Roi, por Luís XVI (1754-1793). Um ano antes, o artista apresentara no Salon, com grande sucesso, as suas Vues des Jardins de Versailles dans le Temps qu’on en abattait les arbres, que deram ao público parisiense um vislumbre do grande projecto de Luís XVI que visava transformar os ordenados jardins de Versalhes numa floresta selvagem – numa passagem da natureza controlada à natureza liberta, muito de acordo com as ideias dos philosophes (especialmente Jean-Jacques Rousseau) e com o modelo do parque inglês – que se traduziu, por exemplo, no abate e replante de cerca de duzentas mil árvores nos Invernos de 1774-75 e 1775-76. No Museu Gulbenkian podemos ver dois admiráveis estudos para essas obras (hoje no Palácio de Versalhes): Le Tapis Vert, com que iniciámos este blogue, e Le Bosquet des Bains d’Apollon, pintados provavelmente em 1775.

Nas suas funções, Hubert Robert não se limita a representar o que vê. Intervém no mundo visual: imagina e cria o que de outra forma não seria possível ver. No Parque de Versalhes, como pintor e decorador, concebe vistas, elabora cenários, compõe espaços, escolhe e instala esculturas e obras diversas. O seu trabalho é um misto de pintura, decoração, instalação e comissariado artístico, cruzando meios, géneros e matérias. Exemplo disso é a Grotte des Bains d’Apollon – que recria o Palácio de Tétis – onde Robert reinstalou três grupos escultóricos de artistas franceses do século XVII. Rochas, árvores, água e invisíveis sistemas hidráulicos combinam-se com esculturas classicistas para criar uma obra complexa e fantástica. Um pedaço da desejada natureza selvagem, artificial e ilusória. Uma obra de land art muito antes desta existir.

Hubert Robert (1733-1808). Le Bosquet des Bains d’Apollon, 1803. Paris, Musée Carnavalet.

Ao contrário da tela que o artista pintou em 1803 e que se encontra hoje no Musée Carnavalet, em Paris, O Pequeno Bosque dos Banhos de Apolo não nos dá a ver o resultado final – terminado somente em Setembro de 1780 – mas o seu processo. A pintura encena uma visão dos trabalhos neste sector do Parque, cerca de quinhentos metros a nordeste da vista proporcionada pelo Tapete Verde, mostrando-nos o corte das árvores e o desmantelamento dos jardins, as visitas de inspecção da família real e uma das esculturas, Tritões com os Cavalos de Apolo (c.1670), de Gaspard Marsy (1624/25-1681) e Balthazar Marsy (1628-1674), antes da sua transferência definitiva para a gruta de maravilha – onde ficará à esquerda do grupo central.

Le Bosquet des Bains d’Apollon, Parque do Castelo de Versalhes (fonte: wikipedia).

Quinhentos metros a nordeste d’O Tapete Verde (mas para nós, dentro da sala do Museu Gulbenkian, ali logo ao lado), Robert, pintor de ruínas – que é como quem diz, de desolações e melancolias – mais fingidas que reais, mostra-nos uma ruína natural: um pedaço destroçado do velho parque de Luís XIV (1638-1715) e André Le Nôtre (1613-1700). Mas também os preparativos para a sua reconstrução – também como ruína (pois o que é uma gruta senão um arruinado, ou erodido, pedaço de rocha?). Ruína e transformação: a obra, tal como a vida de Hubert Robert, desenrola-se entre estes dois pólos. Tempos de convulsão, tempos de revolução, tempos de transição. Porque será que estas obras surtem em nós uma tão forte, familiar e íntima atracção?

quarta-feira, 25 de março de 2009

O Tapete Verde

Hubert Robert (1733-1808). Le Tapis Vert, c.1775. Óleo sobre tela, 67 x 101,7 cm. Lisboa, Museu Calouste Gulbenkian.

Quem conhecer o Museu Gulbenkian talvez possa recordar-se de uma pintura de Hubert Robert, Dessinateur des Jardins du Roi de Luís XVI. O inverno violento de 1774-75 arruinou os jardins de Versalhes e, entre outros retratos dos trabalhos de abatimento hoje espalhados por vários locais, deu origem a este Le Tapis Vert. A melancolia da paisagem desolada, as árvores derrubadas e o corte dos despojos, ocupada por trabalhadores em descanso, crianças que brincam e elegantes que se passeiam e inspeccionam, vigiada, como por deuses, pelas esculturas impassíveis e um pouco licenciosas, fazem de nós espectadores de uma visão estranha e misteriosa. É esta melancolia ambígua que queremos invocar para falar do parque da Pena e das tapadas em seu torno.

Há uma tradição antiga de verdura luxuriante na serra de Sintra, mas essa abundância parece ter decaído ao longo dos tempos e, por meados do século XIX, Alexandre Herculano descrevia uma montanha nua, (...) cujos antigos bosques desapareceram há muito, e onde a cepa já começa a escassear (...) Sintra foi por séculos a montanha das selvas. Onde estão estas? Caíram sob o machado da imprevidência. Os estevais seguiram-nas. Agora revolve-se o chão para arrancar algumas raízes. Que arrancarão as gerações futuras? Pedras? (...).

A Alexandre Herculano sucedeu um século de intensa plantação de floresta, liderado por D. Fernando II e pela sua obra máxima no parque da Pena. Aquilo a que aprendemos a chamar Sintra, os seus parques e a sua extraordinária vegetação, é o resultado desse impulso fundador e de todos os que o continuaram. Em ciclos de maior actividade e de maior apatia, sobrepondo a sua acção zelosa e o seu desleixo, trouxeram a Sintra vegetal até nós.

Todos sabemos que as últimas décadas foram tempos de entrega progressiva dos parques e das tapadas à sua sorte, com jardins, caminhos, construções e plantações preciosas engolidas por uma massa verde, tudo abraçando, de todas as direcções provindo e em todas as direcções se dispersando. Para quem aprendeu a mergulhar em Sintra no princípio da década de oitenta, como nós, a serra sempre foi isto, e nada senão isto: uma floresta fabulosa, densa, descontrolada e decadente. Todos os invernos se lamentavam árvores grossas e carcomidas das plantações mais antigas, envoltas em hera e cobertas de fetos e musgos, atiradas ao chão pelo último vendaval. E todos os verões se morria de medo dos incêndios que, temíamos, se deflagrassem na serra varreriam num segundo a selva abandonada.

Naturalmente, apaixonados pela nossa floresta virgem, ficámos em estado de choque com o despertar reformador dos últimos dois anos. Percursos há muito tempo esquecidos surgiam do nada. Novos resguardos de madeira acompanham os caminhos. Constroem-se degraus e calçadas. Redes e vedações sinalizam áreas em obras. Jardineiros voltam aos jardins. Acima de tudo, homens e máquinas entram nos bosques, serrando e cortando. Progressivamente, a selva mágica e misteriosa foi sendo arrasada e, no seu lugar, ganha agora corpo um lugar estranho: recantos varridos e minuciosamente tratados, matas esquálidas, clareiras desoladas, árvores majestosas libertas de trepadeiras, pequenas folhosas que subitamente respiram, cepos em sangue, ramos mortos, lascas de madeira, troncos arrancados, terra revolvida.

Os jardins de Versalhes foram reconstruídos e replantados após a devastação e voltaram a um estado de glória. E nós, acreditamos que Sintra e o parque vão renascer? Ou, sem crença, revolta-nos a fúria regeneradora e tememos o regresso do pedregal calvo que a serra em tempos foi? Sentimo-nos felizes, porque o perigo dos tempos de abandono parece afastado, pela primeira vez nas nossas vidas? Ou infelizes, porque esperávamos que a morte arrastada da floresta fabulosa se prolongasse e a prolongasse, ainda assim, para além das nossas próprias vidas? Realmente, não sabemos. Assim começa este blogue.