Jean-Honoré Fragonard (1732-1806), Festa em Rambouillet (ou A Ilha do Amor), c.1775. Óleo sobre tela, 71 x 90 cm. Lisboa, Museu Gulbenkian.
No Parque da Pena não há rios com cascatas, nem há gôndolas, mas há estranhas árvores retorcidas e uma densa, inquietante e encantatória floresta. Há também pequenos lagos, miradouros caprichosos e caminhos tortuosos que se perdem no misterioso verde. Há pessoas felizes a deambular, mesmo que já não haja festas. Mas, sabemos nós, volta não volta, há pequenos festins ou, simplesmente, grandes piqueniques. Por exemplo, nas margens do Lago de Cascais.
O amor oitocentista – que perdura até hoje – pelos bosques e, em geral, pela natureza selvagem, sobretudo a que é humanamente criada, que esteve na origem do frondoso Parque da Pena, nasceu no século XVIII. Como nasceu, de forma mais ampla, o conceito que lhe está subjacente de espaço atmosférico: um espaço ambíguo, despojado de referências arquitectónicas e vazio de linhas rectas perspécticas e que, em muitos aspectos, parece feito da mesma matéria, dúctil e informe, do ar e das nuvens. É o espaço que vemos, por exemplo, na Festa em Ramboillet (ou A Ilha do Amor), pintada por Jean-Honoré Fragonard (1732-1806) por volta de 1775, comprada em 1928 por Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955) e hoje exposta no Museu Gulbenkian. Ou, com o mesmo tema e directamente relacionado com esta obra, no mais famoso guache de Fragonard – actualmente numa colecção americana.
Não temos a certeza de se tratar do Parque de Rambouillet, cedido em 1783 a Luís XVI; pode ser o de Chantilly ou o do Castelo de Cassan, afiançam alguns investigadores (o título é do século XIX). Verdadeiramente, não será (nem nunca foi) nenhum em particular: inventado por Fragonard, ele é o fascinante produto da sua imaginação e a paisagem a personagem principal de um mundo no qual as figuras e os adereços da festa constituem meros figurantes. Este mundo luxuriante, simultaneamente fascinante e assustador, assemelha-se, como num sonho, a um lugar onde a identidade dos elementos parece pronta a estranhas transmutações e onde são frágeis as fronteiras entre os domínios terreno e aéreo. De facto, as frondosas árvores que constituem o cerne de toda a composição e a ocupam quase totalmente, rapidamente poderão ser tomadas por nuvens escuras e ameaçadoras e a árvore despida e ziguezagueante, próxima do centro da pintura, como um relâmpago que irrompe do seio daquelas e atinge furiosamente o mundo inferior.
Por tudo isto, a Festa em Ramboillet reflecte, de forma clara, uma importante transformação na cultura europeia na viragem do século XVIII para o XIX: anuncia o novo e moderno prazer pelo que é ambíguo, indeterminado e, por isso, subjectivo. Reflecte essa “atmosferização” de toda a natureza, que deixa de ser vista como um enigma a estudar, a compreender e a solucionar para se tornar, sobretudo, uma fonte de inquietante prazer, capaz de excitar a alma e arrepiar o corpo, um mistério empolgante e uma jubilosa ameaça, face à qual, como nas figuras de Fragonard, a escala humana é desproporcionadamente pequena. O pintor cria assim um território que sendo, simultânea e ambiguamente, um locus amoenus e um locus horrendus é, acima de tudo, um lugar de intensa paixão.
O amor oitocentista – que perdura até hoje – pelos bosques e, em geral, pela natureza selvagem, sobretudo a que é humanamente criada, que esteve na origem do frondoso Parque da Pena, nasceu no século XVIII. Como nasceu, de forma mais ampla, o conceito que lhe está subjacente de espaço atmosférico: um espaço ambíguo, despojado de referências arquitectónicas e vazio de linhas rectas perspécticas e que, em muitos aspectos, parece feito da mesma matéria, dúctil e informe, do ar e das nuvens. É o espaço que vemos, por exemplo, na Festa em Ramboillet (ou A Ilha do Amor), pintada por Jean-Honoré Fragonard (1732-1806) por volta de 1775, comprada em 1928 por Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955) e hoje exposta no Museu Gulbenkian. Ou, com o mesmo tema e directamente relacionado com esta obra, no mais famoso guache de Fragonard – actualmente numa colecção americana.
Jean-Honoré Fragonard (1732-1806), Festa em Rambouillet (ou A Ilha do Amor), c.1775. Guache sobre papel, 26,7 x 35,6 cm. Nova Iorque, Colecção John W. Strauss.
Não temos a certeza de se tratar do Parque de Rambouillet, cedido em 1783 a Luís XVI; pode ser o de Chantilly ou o do Castelo de Cassan, afiançam alguns investigadores (o título é do século XIX). Verdadeiramente, não será (nem nunca foi) nenhum em particular: inventado por Fragonard, ele é o fascinante produto da sua imaginação e a paisagem a personagem principal de um mundo no qual as figuras e os adereços da festa constituem meros figurantes. Este mundo luxuriante, simultaneamente fascinante e assustador, assemelha-se, como num sonho, a um lugar onde a identidade dos elementos parece pronta a estranhas transmutações e onde são frágeis as fronteiras entre os domínios terreno e aéreo. De facto, as frondosas árvores que constituem o cerne de toda a composição e a ocupam quase totalmente, rapidamente poderão ser tomadas por nuvens escuras e ameaçadoras e a árvore despida e ziguezagueante, próxima do centro da pintura, como um relâmpago que irrompe do seio daquelas e atinge furiosamente o mundo inferior.
Por tudo isto, a Festa em Ramboillet reflecte, de forma clara, uma importante transformação na cultura europeia na viragem do século XVIII para o XIX: anuncia o novo e moderno prazer pelo que é ambíguo, indeterminado e, por isso, subjectivo. Reflecte essa “atmosferização” de toda a natureza, que deixa de ser vista como um enigma a estudar, a compreender e a solucionar para se tornar, sobretudo, uma fonte de inquietante prazer, capaz de excitar a alma e arrepiar o corpo, um mistério empolgante e uma jubilosa ameaça, face à qual, como nas figuras de Fragonard, a escala humana é desproporcionadamente pequena. O pintor cria assim um território que sendo, simultânea e ambiguamente, um locus amoenus e um locus horrendus é, acima de tudo, um lugar de intensa paixão.
Só agora com oportunidade de me actualizar e renovadamente deliciar com o vosso blogue. De cada vez que aqui volto pergunto-me por que andei tão estupidamente distraída Não perco pela demora, porém: sempre um deleite!
ResponderEliminarObrigado por toda a simpatia, sabe tão bem deliciar!
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