A Sintra luxuriante dos nossos dias, tão diferente da que Herculano descreveu há século e meio, deve muito a uma migração de culturas dendrófilas norte-europeias, que aqui se aclimataram com resultados que hoje vemos como a quintessência sintrense – desde logo, à cabeça, a germânica Pena, seguida do seu irmão britânico menor, Monserrate. Mas as recriações do Jardim do Éden não se ficaram pelas grandes escalas: foram generalizadas com várias intensidades e diferentes sucessos, desde a grande quinta histórica à casa de bonecas com o seu pátio de um palmo.
Foi e continua a ser o conjunto de acções de múltiplos proprietários inspirados, com os seus parques públicos ou privados, a fonte primeira desse deslumbrante equilíbrio de paisagem que conhecemos, em parte edificada, em parte natureza domesticada, em parte quase selva. Porém, quando estes proprietários são contaminados pelo ódio meridional à arborização séria e perdem o sentido dos seus deveres e da sua responsabilidade, os resultados são desastrosos: Sintra descintrifica-se.
Na base das escadinhas de Santa Maria havia uma casa no meio do seu jardim-selva, próprio de um local há muito tempo em quase abandono. Precisava de quem tratasse dele, é certo, mas o recanto, para quem passava nos caminhos em volta, era um gosto de sombra e verde saturado. Há poucos anos a casa foi comprada por diplomatas, cremos que vindos de um lugar hispânico – talvez o deserto de Sonora, talvez o de Atacama, talvez um pedaço dos mais estéreis de Castela Nova ou Aragão. Atarefaram-se em obras na casa e no jardim, e o resultado foi este:
Não gostamos dos detalhes decorativos, mas é mera questão de gosto, tal como o são, de outro modo, o pavilhão de churrasco e a piscina. Mas arrasar toda vegetação e cobrir o chão de lajes em forma de calçada calcária é puro crime lesa-Sintra para o qual não há perdão. Um sítio magnificamente sintrense transformou-se assim num sítio desgostoso a evitar. A única réstia de esperança está agora na placa “vende-se” pendurada após a devastação. Roga-se aos futuros proprietários um pouco mais de sensibilidade e algum reconhecimento pelo lugar único que lhes será permitido partilhar. Plantar um jardim-bosque que merecesse Sintra seria um bom começo.
Nem falta a indispensável marquise, ou lá o que seja aquela coisa branca. Há imenso tempo que não passo por lá. Fiquei chocado. Senti despertar o Capitão Ahab que há dentro de cada sintrense que se depara com estes atentados nossos de cada esquina.
ResponderEliminarDescintrificação: excelente neologismo. Mas que bom seria se nunca nos tivéssemos socorrido dele!
Tanto deserto/descampado (literalmente e/ou de ideias) onde uma obra destas não faria qualquer diferença...
ResponderEliminarAntónio: que indiscrição, estávamos a tentar ocultar a marquise para evitar que a fúria do capitão Ahab se convertesse em apoplexia! E, no entanto, bastava que as grandes árvores ainda vivessem para que ninguém visse a marquise ou o que quer que fosse. Para além da falta de respeito por Sintra, é também, para mal dos nossos olhos, uma falta de respeito pela sua própria privacidade.
ResponderEliminarAntuérpia: nem mais, isto podia ser num clandestino em Odivelas, ou nos subúrbios de Alcácer-Quibir. Porquê escolher a folhosa Sintra, entre todos os despidos (e desertos de ideias - imagem bem achada!) locais que nos rodeiam?
Três soberbas árvores co-habitavam neste espaço: Uma magnólia virada para a casa, um cedro muito alto e um castanheiro da India que estendia os seus ramos baixos para o lado das Escadinhas de Santa Maria. Há cerca de 4 anos, com autorização da C.M.S., o proprietário cortou, primeiro a magnólea e o castanheiro, depois, por indicação da Polícia Florestal foi abaixo o cedro que, sozinho, estava em perigo de cair num dia de vendaval. Seguiu-se, a piscina, o churrasco,a marquise, o ridículo jardim japonês e a impermeabilização quase total do jardim com lages assentes em placa de betão. Ficou ainda por colocar um portão com o consequente derrube de parte do muro para a entrada de carros no espaço porque a Direcção do Centro Histórico de Sintra não autorizou.
ResponderEliminarA casa já foi vendida mas, dificilmente qualquer boa vontade poderá trazer de volta a este lugar o encanto e a poesia que todos lhe reconheciam.
ereis
Acrescento ainda que, segundo informação da Polícia Florestal, a C.M.S. não podia ter impedido o corte das árvores. Mas, não poderia ter aconselhado uma outra solução mais razoável de modo a não terem sido todas sacrificadas?
ResponderEliminarereis
Cara Emília Reis, obrigado por toda a informação detalhada, que não conheciamos. Quanto ao corte das árvores, a CMS só não pode impedir crimes como este porque não quer. É o tipo de disposição que esperariamos encontrar num regulamento municipal para a área classificada pela UNESCO (e talvez não só para esta área). Aliás, a protecção da arborização privada já é um dos pontos do Plano de Gestão de Sintra Património Mundial disponível no site da CMS. Como todos podemos ver, tal não é minimamente posto em prática.
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